domingo, 20 de junho de 2010

Totem e Peru: Pai Castrador, Filho Transgressor



Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar a relação entre conto “O peru de natal”, do escritor brasileiro Mário de Andrade, o tabu e o totemismo nas sociedades primitivas.

Palavras-chave: Pai, filho, totem, peru, imagem castradora.

Abstract: This article’s object is the relationship between “O peru de natal”, by the Brazilian writer Mario de Andrade, taboo and totemism in the primitive communities.

Keywords: Father, prohibition, sun, totem, turkey, castrator image.


O conto “O peru de natal”, de Mário de Andrade, relata a história do personagem-narrador Juca, o qual aborda com uma visão crítica a relação autoritária e castradora do pai para com ele e a família. Juca, logo no início do conto, já nos dá indícios de nutrir uma profunda revolta contra a figura dominadora paterna quando o mesmo descreve o pai como “um ser de natureza cinzenta”, “acolchoado no medíocre”, “o puro sangue dos desmancha-prazeres”, dentre outras coisas. Esse descontentamento com relação ao pai se mostra ainda mais expressivo quando, mesmo após a morte deste, sua imagem continua como uma lembrança obstruente, subjugando e limitando a família em desfrutar de certos deleites.

(...) Quando chegamos nas proximidades do natal, eu já estava que não podia mais para afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado para sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugeri a mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas.

Como uma forma de escapar dessa estrutura castradora, que fazia dos prazeres um tabu, o personagem-narrador Juca criou para si um mecanismo de autodefesa, um tipo de comportamento considerado por todos extravagante e inapropriado, o qual ele mesmo se refere no texto como suas “loucuras”.

(...) Essa fora, aliás, e desde muito cedo, minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. (...) eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”.(...), pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, por que eu era doido, coitado. Resultou disto uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Para se opor à ceia reles que seu pai impunha todos os anos no natal, o personagem-narrador tem a idéia de propor a família que, logo no primeiro natal após a morte do patriarca, se faça um peru só pra eles, e a idéia, ao invés de reprovada, é aceita com mal-disfarçado contentamento por parte de todos.

E é durante a ceia que o embate entre o peru (transgressão) e a imagem do pai (castração) se realiza.

Totemismo, segundo a antropologia, consiste em um conjunto de praticas sociais, crenças religiosas e mitos relacionados ao totem. Este totem pode ser um animal, vegetal ou qualquer entidade ou objeto em relação ao qual um grupo ou subgrupo social (p. ex., uma tribo ou um clã) se coloca numa relação simbólica especial, que envolve crenças e práticas específicas, variáveis conforme a sociedade ou cultura considerada. A partir disto, como no exemplo que veremos mais adiante, cria-se o chamado tabu, que consiste em uma proibição, a qual pode ser alimentar, sexual, religiosa ou etc.

Em “O peru de natal”, de Mario de Andrade, o peru é, a princípio, uma espécie de tabu para a família do personagem-narrador Juca. A ave é preparada apenas em ocasiões festivas e somente com o objetivo de forjar para os demais parentes uma fartura inexistente, visto que, o patriarca, como o provedor da família, impunha a eles uma série de restrições, inclusive alimentares. Utilizando as palavras do próprio texto, peru para eles era “só no enterro dos ossos, peru resto de festa”. Já em um segundo momento no texto, o peru passa a ser uma espécie de totem que, após a morte do patriarca, simbolizará uma libertação para a família, da imagem castradora do pai.

Tornando a relação entre o pai e a família do narrador-personagem Juca, embora este último sentisse uma profunda revolta contra a dominação paterna à estrutura familiar, as mulheres da família, após a morte do patriarca, ainda se sentiam muito presas a uma imagem idealizada do pai.

(...) os próprios laços que unem, seja os seres de um mesmo grupo, seja os diferentes grupos entre si, são concebidos como laços sociais. (...) estes laços são representados sob a forma de laços familiares, ou com relação de subordinação econômica ou política; pode se dizer, pois, que os mesmos sentimentos que estão na base da organização doméstica, social, etc., presidiram também a repartição lógica das coisas. (...) O que faz com que umas se subordinem às outras é, em todos os pontos, análogo ao que faz o objeto possuído aparecer como inferior a seu proprietário, o servo ao seu senhor. Foram, pois, estados coletivos que deram nascimentos a estes grupos e, ainda mais, estes estados são manifestamente afetivos. Existem afinidades sentimentais entre as coisas como entre os indivíduos, e elas se classificam segundo tais afinidades. (Durkheim, 1998, 199-200).

Alguém tendo lido “O peru de natal”, poderia indagar por que sendo o patriarca um ser tão mesquinho e de natureza tão cinzenta, somente um dos filhos se insurgira contra esta estrutura dominadora a qual os demais se submeteram passivamente. Bem, em primeiro lugar, no conto temos apenas a visão de um personagem, que é também o narrador, portanto jamais saberemos se tudo o que ele diz a respeito do pai é verdadeiro ou apenas fruto da mente rebelde de um jovem que talvez não tenha superado saudavelmente seu complexo de Édipo e deseje, portanto, denegrir a imagem do pai a fim de ocupar, de alguma forma, o lugar do mesmo na família. Mas isto não passa de uma hipótese, obviamente. Em segundo lugar, tratava-se de uma típica estrutura patriarcalista do início do século XX, onde o texto acima conseguiria explicar com clareza essa relação, também de afetividade, existente entre o dominador e o dominado, entre o patriarca e a família. E em terceiro lugar, poderíamos associar a imagem do pai uma instancia psíquica denominada superego, ou seja, o pai é, pois, interiorizado, e sua lembrança idealizada toma, na família, o lugar ideal do Eu, assegurando a unidade coletiva. Como se esse ideal se construísse nas limitações, nas restrições, na negação do prazer. Um exemplo disso é o que ocorre na passagem abaixo:

(...) De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento, aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

E, se a figura do pai associamos ao superego, a de Juca (o filho) poderíamos associar ao id, como o ser que desencadeia o desejo do peru, da transgressão, do embate com a imagem castradora paterna. Assim, para completar o ciclo, a família, dividida entre estas duas instâncias id e superego, se identificaria como o ego.

Ao fim do conto, enquanto Juca e a família degustavam o tão esperado peru, eis que surge a imagem do pai para tirar-lhes o gosto pela ave. Juca principia por enaltecer o peru, o que fortalece ainda mais o espectro imaginário, então, o personagem-narrador torna-se enfim hipócrita, não mais renega a ausência do pai, mas a assume de maneira que esta perde a evidência, se tornando uma “inestorvável estrelinha do céu”¹ e todos podem finalmente apreciar a ceia de natal, celebrando o início de uma nova vida.


Concluindo, “O peru de natal” retrata um conflito comum às comunidades primitivas e à composição familiar do início do século XX, conseqüência de uma estrutura patriarcal autoritária, em que a disputa pelo poder sobre o clã ou núcleo familiar leva a uma emulação entre as figuras paterna e filial. A palavra “peru”, no português brasileiro chulo remete ao órgão sexual masculino, considerando a relação totêmica do peru no conto, poderíamos assim dizer que o ato trangressório de coero peru, que era até então um tabu imposto ao núcleo familiar, era, para o personagem-narrador Juca, devorar a “virilidade” do pai. Este, enquanto vivo, permitia apenas que a família externa ao núcleo (a parentagem), apreciasse a ave, visto que esta era uma forma de afirmar também sobre os outros clãs seu poder econômico, sua virilidade era assim expressada através da capacidade de oferecer aos outros o peru². Para o pai, a restrição alimentar era uma forma de exercer o seu domínio, o seu poder sobre o seu pequeno clã (a família). Então, após a morte do patriarca, devorar o objeto totêmico que representava metaforicamente a virilidade do pai, era uma forma de devorar a imagem obstruente do mesmo, de exorcizá-la, é o que o personagem narrador Juca faz. E assim, através de um canibalismo simbólico, ele liberta a família da imagem castradora do morto para que possam redescobrir, em toda sua intensidade, o amor familiar.


¹ Segundo a mitologia astronômica, modelada sobre a organização totêmica, a determinado antepassado um astro é atribuído. Rodrigues ( 1998, p. 187)

² O totem que era proibido para alguns membros do clã e não o era para outros poderia ser degustados por estes, assim como o totem proibido para um determinado clã poderia ser degustado pelos outros clãs durante celebrações. (...) somente em algumas comunidades, o marido se abstinha de comer o totem proibido para sua esposa para não o passar a ela de maneira indireta durante o coito.

Autores: Caterine Araújo, Geysson Lima / UECE

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