domingo, 20 de junho de 2010

Morte e Vida Severina - Análise parte II - Dialogando com outras obras


Gênese e Influências

Ninguém melhor do que o próprio autor para nos relatar o processo de criação de uma obra. Deixemos, então, que João Cabral de Melo Neto nos explique a gênese de sua peça:

"Meu primeiro poema foi publicado em 1942 no Recife, mas não tinha nada a ver com a cidade. Era de influência surrealista. Tenho 180 poemas escritos sobre Pernambuco - a maioria deles sobre o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos se pudesse. A veia inspiradora do Recife não morre, porque a cidade continua a existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O Cão Sem Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954. Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade. Eu não precisava estar lá para recriar o universo sobre o qual falo em meus poemas. Não acabaram as favelas nem as populações ribeirinhas do Capibaribe, que conheci na minha adolescência andando pelos mangues perto de casa, na Jaqueira. Algumas pessoas chegaram a me perguntar se eu tinha me inspirado em Josué de Castro e sua Geografia da Fome na hora de escrever esses dois poemas. Conheci, admiro e respeito Josué de Castro, que foi meu chefe em Genebra. Mas não me inspirei nele. Fiz poesia e emoção sobre aquela realidade miserável do Recife. Ele fez ciência. Essa é a diferença entre nós.

A história desses dois poemas é bem simples. Eu era cônsul-geral do Brasil em Barcelona quando li numa revista que a média de vida na Índia era de 29 anos. Isso significava um ano a mais que os 28 anos de perspectiva de vida do recifense. Fiquei absolutamente estupefato com esse dado estatístico. Comecei a lembrar do Recife de minha infância. Durante certo tempo morei numa casa da Praça do Carmo, em Olinda. Morava lá e estudava no Colégio Marista do Recife. Ia e voltava do colégio num bonde. Esse bonde saía do centro da cidade, passava pelo Mercado de Santo Amaro, pelo Cemitério dos Ingleses, e tomava a Estrada de Luiz do Rego, onde hoje é o Complexo de Salgadinho e a Escola Naval. Pois bem, tudo aquilo era favela e mangue. O bonde passava por dentro da favela e eu assistia à miséria. Fui lembrando disso, revendo essas imagens na memória e cheguei à conclusão que a beleza do Recife contrastava com a sua pobreza comparável à de Bangladesh. E fui recriando a atmosfera miserável para escrever O Cão Sem Plumas. Eu brincava com aqueles miseráveis que só viveriam em média 28 anos! E as senhoras da sociedade pernambucana faziam crochê para doar aos mortos de fome da Índia, sem olhar para o quintal delas. Foi isso que me chocou e que me levou a escrever esse poema, o primeiro sobre o Recife. Tinha escrito três anos antes Psicologia da Composição, um livro teórico, e achava que minha produção literária estava encerrada. Na verdade, apenas começava.

Fui então para Londres e trabalhei como nunca. Não dava tempo para escrever. Em 1952 alguns idiotas denunciaram a mim e a outros diplomatas como militantes comunistas. Fomos afastados do Serviço diplomático e eu voltei ao Recife por quase dois anos. Fui trabalhar no escritório do meu pai e tentar sustentar a família enquanto processava o governo. Aí cruzei com Maria Clara Machado, filha do meu bom amigo mineiro Aníbal Machado. Ela me encomendou um Auto de Natal para encenar. Escrevi Morte e Vida Severina. Ela leu e devolveu. Disse que não servia. Como o poema era grande e José Olympio queria lançar minha primeira antologia, cortei as marcações para o teatro e incluí Morte e Vida Severina no livro, para dar volume. Foi uma surpresa quando encontrei com Vinicius de Moraes no Rio e ele me disse: "Joãozinho, estou maravilhado com Morte e Vida Severina". Aí eu não entendi nada. "Vinicius, eu não escrevi Morte e Vida Severina para intelectuais como você, respondi. "Escrevi para os sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife." O poema é simples, retrata a típica realidade do pernambucano que foge da seca em busca do Recife e termina morando numa favela ribeirinha. Foi um sucesso mundial. Isso me orgulha, mas também me surpreende porque Morte e Vida Severina passou a ser coisa de eruditos.

O que me chateou muito também a respeito do sucesso mundial de Morte e Vida Severina foi que a burrice nacional brasileira começou a fazer inferências políticas sobre o poema. Muita gente queria que depois de cada espetáculo eu subisse ao palco e gritasse "Viva a Reforma Agrária". Recusei-me a fazer isto. Não faço teorias para consertar o Brasil, mas não me abstenho de retratar em poesia o que vejo e sinto. Eu mostrei a miséria que havia no Nordeste. Cabia aos políticos cumprirem seu papel. Essas exigências de engajamento político me irritaram muito. Ainda bem que logo depois fui para Sevilha, Genebra, Assunção e fiquei muito tempo longe do Brasil. Foi o tempo necessário para que parassem de achar que eu deveria fazer arte engajada em vez de poesia pura."

Morte e Vida Severina foi, portanto, escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que já havia levado ao palco, no ano de 1953, em tradução de João Cabral de Melo Neto, a peça A Sapateira Prodigiosa do poeta espanhol Federico Garcia Lorca. O escritor mineiro Aníbal Machado, escrevendo o texto de apresentação no programa da montagem brasileira da peça de Lorca, disse que
"ninguém melhor do que João Cabral de Melo Neto estaria indicado para a versão brasileira da Sapateira Prodigiosa. Não pela circunstância de ter ele vivido longos anos na Espanha; mas pelo fato de haver penetrado como poeta, e como poeta sentido a Espanha na intimidade de suas raízes e na surpreendente riqueza humana de seu povo.(...) Essa "farsa violenta", como lhe chamou o próprio Lorca, não podia encontrar quem melhor lhe assegurasse, na tradução, o timbre colorido, a naturalidade e o ritmo do original. Trata-se da obra de um grande poeta, conduzida pela mão de outro à surpresa e emoções de uma platéia de língua portuguesa."

Se pensarmos na importância que teve para a composição de Morte e Vida Severina o conhecimento de João Cabral da literatura espanhola, as palavras de Aníbal Machado soam proféticas.


É ainda o próprio autor quem nos explica o material poético utilizado por ele na construção de Morte e Vida Severina:

"Esse texto não poderia ser mais denso. Era obra para teatro, encomendada por Maria Clara Machado. Foi a coisa mais relaxada que escrevi. Pesquisei num livro sobre o folclore pernambucano, publicado no início do século, de autoria de Pereira da Costa. Eu era consciente de que não tinha tendência para o teatro, não sabia criar diálogos no sentido da polêmica. Meus diálogos vão sempre na mesma direção, são paralelos.

Observe o episódio das pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a mesma coisa. A cena do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da Costa. “Compadre, que na relva está deitado” é transposição deste folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama. “Todo céu e terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas. Com Morte e Vida Severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de incelências é típico do Nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega."

Além deste material poético, seja da antiga poesia ibérica, seja do folclore pernambucano, outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30. As preocupações de escritores como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, que se voltaram criticamente para a dura realidade sertaneja antes de João Cabral de Melo Neto, acham-se sintetizadas poeticamente em Morte e Vida Severina.

O romance inaugural do regionalismo neo-realista de 30, A Bagaceira, de 1928, de José Américo de Almeida, narrado na terceira pessoa, por um narrador observador onisciente, apresenta um trabalho de linguagem muito rico. O narrador utiliza-se de uma linguagem erudita, de acordo com a norma culta da língua portuguesa. Já as falas das personagens procuram reproduzir o falar sertanejo, alcançando, por vezes, efeitos de poeticidade próximos àqueles alcançados, na década seguinte, por João Guimarães Rosa. A dicotomia entre a linguagem refinada do narrador e a brutalidade da linguagem das personagens cria uma tensão lingüística que é um dos aspectos mais salientes e importantes do romance.

O próprio Guimarães Rosa afirmava que José Américo de Almeida "abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro". Sem dúvida, muito do que um Graciliano Ramos ou um José Lins do Rego iriam tematizar, de maneira mais contundente, já está presente em A Bagaceira - a miséria do sertão; a brutalização do ser humano nordestino; as relações entre os senhores de engenho e os seus empregados; os conflitos de gerações; o ser humano e os animais apresentados como o Severino de João Cabral de Melo Neto, como sócios da fome.

O romance se abre com um prefácio/manifesto, intitulado "Antes que me falem", em que José Américo expõe alguns dos princípios básicos que haveriam de nortear, não apenas a composição da sua obra, mas também de todo o Regionalismo de 30. Vejamos um fragmento:

"O regionalismo é o pé-de-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque é uma expressão da humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos."

O que João Cabral de Melo Neto conseguiu com Morte e Vida Severina foi exatamente colocar uma inteligência mais requintada a serviço do regionalismo, revelando para o mundo aspectos despercebidos da realidade nordestina e brasileira. Em outras palavras, realizou o sonho de José Américo de Almeida.


Outra obra com a qual Morte e Vida Severina dialoga diretamente é o romance O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz. O sucesso que rapidamente alcançou em todo o país esta obra de uma então jovem cearense de 20 anos fez com que O Quinze fosse uma das obras fundamentais na divulgação do regionalismo de 30. Escrito em linguagem bem mais direta e simples do que o romance de José Américo de Almeida, a obra de estréia de Rachel de Queiroz usa a seca de 1915, no Ceará, como pano de fundo para revelar o sofrimento e as angústias tanto dos miseráveis, quanto dos proprietários rurais.

Narrado na terceira pessoa, utilizando da onisciência, o romance apresenta dois núcleos dramáticos que se cruzam: a odisséia de Chico Bento, vaqueiro pobre e desempregado, e sua família, fugindo da seca rumo a Fortaleza, e os desencontros amorosos entre a professora Conceição e o seu primo e quase namorado, o pecuarista Vicente. Conceição leva sua avó, Inácia, da fazenda onde mora, em Quixadá, para ficar em Fortaleza enquanto perdurar a seca. Na capital, a professora, solteirona (aos 22 anos!), ajuda os miseráveis reunidos no Campo de Concentração e pensa no seu primo Vicente que permanece em Quixadá, cuidando bravamente da fazenda da família. Divididos tanto no espaço, quanto por interesses diversos e intrigas várias, os primos, incapazes de se comunicar, vão, mesmo se amando, separando-se a cada dia mais. Enquanto isso, a distância entre Quixadá e Fortaleza vai sendo coberta, a pé, sob o sol escaldante, sem água e sem comida, por Chico Bento, sua mulher Cordulina, sua cunhada Mocinha e seus cinco filhos. Mocinha fica pelo meio do caminho e acaba "caindo na vida", o filho mais velho morre envenenado, outro foge e se perde para sempre. A família, já bem reduzida, acaba por chegar ao Campo de Concentração em Fortaleza, onde é acolhida por Conceição, que fica com o filho mais novo e consegue passagens para os restantes irem tentar uma sorte melhor em São Paulo. Com o fim da seca, Conceição vai visitar Quixadá, sentindo-se "estéril, inútil, só". Encontra-se com Vicente, também solitário, mas a comunicação entre os dois já se tornara impossível. "E Conceição o viu sumir-se no nevoeiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes."

Sem dúvida alguma podemos considerar Chico Bento e sua família como precursores diretos de Severino, o retirante que procura, através de sua odisséia esfomeada, chegar à capital e a uma vida melhor.

Mas é Graciliano Ramos o escritor regionalista de 30 a quem João Cabral de Melo Neto reconhecidamente admira e dedica um comovido poema no livro Serial (1961), em que a voz em primeira pessoa de Graciliano, marcada pelos dois pontos incomuns do título, confunde-se com a sua própria voz:


Graciliano Ramos:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

* * *
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se na fraude.

* * *

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

* * *


Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.


O poema de João Cabral apresenta não apenas uma interpretação da obra de Graciliano Ramos, mas aponta exatamente para os locais de encontro entre sua própria obra, em especial Morte e Vida Severina, e as do maior dos regionalistas de 30. Falo somente com o que falo: a linguagem enxuta, cortante e densa. Falo somente do que falo: a vida seca, áspera e clara do sertão. Falo somente por quem falo: o homem sertanejo sobrevivendo na adversidade e na míngua. Falo somente para quem falo: para os que precisam ser alertados para a situação de miséria do nordeste. Mais do que uma síntese da obra de Graciliano Ramos, Cabral volta-se para sua própria obra. Através de Graciliano, fala, a um tempo, de Vidas Secas e de Morte e Vida Severina.
É claro que Fabiano, Sinha Vitória e seus meninos "sem nome" são todos Severinos. Vidas Secas (1938) é a fonte mais clara em que bebe João Cabral. Vidas Secas, seu cenário, sua crítica ácida e, principalmente a linguagem seca e direta, de falar com coisas do mestre Graciliano. Como já o apontou o professor Dácio Antônio de Castro, "Vidas Secas tornou-se um clássico da literatura modernista, não só pela originalidade das soluções estilísticas e estruturais, como pela denúncia do drama do trabalhador rural, que ainda não obtiveram solução satisfatória." O mesmo poderia ser dito, sem qualquer alteração, de Morte e Vida Severina.

Um Auto de Natal Pernambucano

Morte e Vida Severina traz como subtítulo Um Auto de Natal Pernambucano. Trata-se, portanto, de uma obra que procura aclimatar a Pernambuco o espírito dos autos sacramentais ou hieráticos da península ibérica. O professor Segismundo Spina assim nos apresenta essa forma dramática:


"Os autos (que assim se chamaram estas representações teatrais peninsulares por conterem apenas um ato) eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou burlesco (mas preferentemente devoto e com personagens alegóricas) desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro religioso se originaram, adquirindo sua forma típica na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI. Suas origens se prendem às representações religiosas do teatro medieval (aos "mistérios", aos "dramas litúrgicos" e às "moralidades"), portanto ligadas ao teatro litúrgico europeu, embora não tenhamos hoje senão vestígios muitos imperfeitos dessas representações peninsulares anteriores a Gil Vicente (em Portugal) e a Juan del Encina e Lucas Fernandes (na Espanha)."

Segundo grandes estudiosos da literatura poética e dramática medieval, como Karl Vossler , uma das principais origens dos autos está na representação medieval natalina dos Presépios, iniciada por São Francisco de Assis, que, obtendo permissão papal, realizou no Castelo de Grecio, na noite de Natal de 1223, uma representação do nascimento de Cristo. É Pereira da Costa, fonte reconhecida por João Cabral com fundamental para a concepção de Morte e Vida Severina, quem nos relata como esses Presépios foram introduzidos em Pernambuco:

"Desde então (1223), conservou-se sempre nas igrejas dos religiosos franciscanos o uso da representação dos presépios, que depois se tornou comum e geral em todo o mundo.
O uso dos presépios em Portugal, como refere Fr. Luiz de Souza, teve começo no convento das freiras do Salvador, em Lisboa, no ano de 1391, levantando-se no meio do templo uma armação, representando o Estábulo de Belém, com figuras que interpretavam a cena do nascimento de Jesus.


Depois, já no século XVI, foi o assunto dramatizado, teve entrada no teatro, e é talvez daí que vem o auto hierático português, de tão variados assuntos. A este respeito diz Theóphilo Braga o seguinte: ''Como em todos os povos católicos em que as festas religiosas do Natal, Reis Magos e Paixão eram a base do teatro hierático, tivemos esses autos ou vigílias, que se ligavam às manifestações do culto, sobretudo no tempo em que a igreja admitia o povo à participação na liturgia. Foi por um monólogo de natureza da visitação da lapinha ou do presépio, que Gil Vicente começou a elaborar a forma literária do auto hierático".

A introdução do presépio em Pernambuco vem, talvez, de fins do século XVI, acaso iniciada no convento dos franciscanos em Olinda, por frei Gaspar de Santo Antônio, a quem na custódia chamavam O Primogênito, por ser o primeiro religioso que tomou o hábito no Brasil, naquele mesmo convento, no ano de 1585."

Como podemos perceber, João Cabral de Melo Neto, ao criar seu Auto de Natal Pernambucano, vai buscar inspiração na antiga tradição medieval ibérica que, por sua vez, já havia penetrado, desde o século XVI, na tradição pernambucana. Ainda segundo Pereira da Costa, a mais bela e aparatosa das festas populares pernambucanas é exatamente as Pastorinhas ou Pastoris, ou mais propriamente, Presépios. A poesia dessas festas vai ser transformada por João Cabral na base para a construção do seu próprio Presépio, no parte final de Morte e Vida Severina.


Dos autores de autos na literatura em língua portuguesa Gil Vicente é certamente o mais significativo. Se João Cabral procurou restaurar o auto medieval no contexto nordestino, jamais poderia ignorar a obra do autor do Auto da Barca do Inferno. Como bem o apontou o professor Ivan Teixeira:

"A experiência vicentina encontra diversas ressonâncias na literatura contemporânea. No Brasil, o exemplo mais célebre talvez seja Morte e Vida Severina (1956), de João Cabral de Melo Neto. Igualmente ao pai do teatro português, João Cabral adota a justaposição de cenas e o verso redondilho. Aproxima-se ainda pelo tom explicativo da sátira contra as desigualdades sociais, assim como pela ênfase na tonalidade poética do enunciado. As personagens possuem a mesma constituição alegórica, representando cada uma um determinado tipo social do Nordeste. Por fim, o subtítulo remete imediatamente ao teatro primitivo de Gil Vicente: "Auto de Natal Pernambucano". De fato, o texto cabralino obedece à estrutura do auto, isto é, classifica-se mais como poesia dramática do que propriamente como peça de teatro."

É ainda em Gil Vicente que encontramos uma descrição da dureza da vida do lavrador que em muito se aproxima da situação do Severino de João Cabral. Como o colocam Óscar Lopes e Antônio José Saraiva:

"A caricatura do lavrador e do pastor nunca em Gil Vicente vai além dos aspectos superficiais e anedóticos, como a linguagem, a ignorância, a simplicidade, que, se os tornam ridículos aos olhos do mundo, lhes dão acesso ao reino dos Céus, ou pelo menos os livram de ir para o Inferno na companhia do fidalgo e do clérigo. Em compensação, as duras condições em que vive o camponês, a rapina de que é vitima, aparecem expressas com vigor na Romagem de Agravados e no Auto da Barca do Purgatório. O Lavrador deste último auto é porventura a personagem mais comovente de toda a obra vicentina:

Nós somos vida das gentes
e morte das nossas vidas.


Vive sujeito ao peso dos tributos e à incerteza das estações. O senhor não lhe perdoa as rendas, pouco se importando com a sua fome. O próprio Deus, que envia inoportunamente o sol ou a chuva, parece estar contra ele, e cerra os ouvidos às suas orações - segundo as queixas de João Murtinheira na Romagem de Agravados."

Esse lavrador abandonado por Deus, vítima da rapina social, já descrito por Gil Vicente, certamente comoveu e inspirou o ateu João Cabral. Dando-lhe, até mesmo, a sugestão do título de Morte e Vida Severina. No entanto, ao contrário de Gil Vicente, o poeta pernambucano jamais ridiculariza seu lavrador, e sim confere-lhe um estatuto trágico sem, no entanto, ser melodramático ou panfletário.


Título, Estrutura e Enredo

Dois procedimentos chamam à atenção de imediato no título do livro. A inversão do sintagma vida e morte e a adjetivação do substantivo próprio Severino. Tais recursos poéticos colaboram para realçar aspectos importantes na composição da obra. Segundo Marta de Senna:

"Ao inverter a ordem natural do sintagma "vida e morte", o poeta registra com precisão a qualidade da vida que seu poema visa a descrever: uma vida a que a morte preside. E ambas, morte e vida, têm por determinante o adjetivo "severina". Igualam-se nisso de serem ambas pobres, parcas, anônimas. O procedimento de adjetivação do substantivo é recorrente na poesia de Cabral, e aqui adquire especial relevo por estar em posição privilegiada, no título da peça. Morte e Vida Severina, porque é Severino o protagonista, que, desde a apresentação, insiste no caráter comum de seu nome, antes um "a-nome" no contexto em que vive. De substantivo próprio, "Severino" passa a ser comum; daí a ser adjetivo é um passo. (...) Será interessante advertir que o uso de "severino" como adjetivo no auto cabralino não é senão a reversão da palavra à sua origem. Diminutivo de "severo", "severino" é originariamente um adjetivo. Daí, passou a ser nome próprio, como ocorreu em tantos outros casos nas línguas ocidentais: Augusto, Cândido, Cristiano, Pio, Clemente - para citar apenas alguns exemplos. Ora, o que Cabral realiza é exatamente o retorno do adjetivo ao adjetivo, sendo o novo enriquecido da carga semântica de que foi alimentado durante o "estágio" substantivo próprio, que, no caso específico, é o Severino anônimo do sertão nordestino."

É importante acrescentar que, além de descrever uma vida presidida pela morte, o título também demonstra o percurso feito por Severino durante a peça. Sai da morte para alcançar a vida. A estrutura geral da peça, ou sua macroestrutura, apresenta exatamente este caminho.



Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes grupos.


As primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino, seguindo o rio Capibaribe, fugindo da morte que encontra por toda parte, até a cidade do Recife, onde, para seu desespero, volta a encontrar apenas a miséria e a morte. Trata-se do Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos de Severino a diálogos que trava ou escuta no caminho.


As últimas 6 cenas apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de Jesus. A peça se encerra, portanto, com uma apologia da vida, mesmo que seja severina. Toda esta parte, com exceção do monólogo final do mestre carpina, foi adaptada por João Cabral de Melo Neto dos Presépios ou Pastoris do folclore pernambucano

Vejamos, através dos títulos explicativos, como o enredo do drama se constrói:

I - Caminho ou Fuga da Morte

1. (Monólogo) - O retirante explica ao leitor quem é e a que vai.
2.(Diálogo) - Encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de: "ó irmãos das almas! irmãos das almas! não fui eu que matei não!"
3. (Monólogo) - O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão.
4. (Diálogo) - Na casa a que o retirante chega estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores.
5. (Monólogo) - Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra.
6. (Diálogo) - Dirige-se à mulher na janela que depois descobre tratar-se de quem se saberá.
7. (Monólogo) - O retirante chega à Zona da Mata , que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.
8. (Diálogo) - Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério.
9. (Monólogo) - O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife.
10. (Diálogo) - Chegando ao Recife, o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros.
11. (Monólogo) - O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe.
12. (Diálogo) - Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio.

II - O Presépio ou O Encontro com a Vida

13. (Presépio) - Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá.
14. (Presépio) - Aparecem e se aproximam, da casa do homem, vizinhos, amigos,
duas ciganas, etc.
15. (Presépio) - Começam a chegar pessoas trazendo presentes para o recém-nascido.
16. (Presépio) - Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos.
17. (Presépio) - Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc.
18. (Conclusão da Peça) - O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte em nada.

As Cenas da Morte

No seu Romanceiro (1828), grande levantamento da poesia popular portuguesa, o poeta português Almeida Garrett apresenta um romance de origem medieval em que um triste cavaleiro de Avalor viaja só e desesperançado acompanhando as margens de um rio:

Pela ribeira de um rio
Que leva as águas ao mar,
Vai o triste de Avalor,
Não sabe se há de tornar.
As águas levam seu bem,
Ele leva o seu pesar;
E só vai sem companhia,
Que os seus fora ele deixar;
Pois quem não leva descanso
Descansa em só caminhar.

É bastante antiga, portanto, a tradição de se colocar em forma poética a perambulação do herói às margens do rio. Tomando como modelo a forma do romance ibérico, pouco antes de escrever Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto havia escrito o longo poema O Rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), em que dá voz ao próprio rio Capibaribe, que relata seu percurso:

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
(...)
Desde tudo que lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

As palavras do poeta ecoam a de um estudioso do século XIX, Manuel da Costa Honorato, que, em 1863, assim descreveu o percurso do Capibaribe:


"(...) nasce na fralda oriental da serra do Jacarará, um dos ramos dos Cairiris Velhos, no Olho-d'Água do Gavião e Lagoa do Angu, e daí por entre a serra donde nasce e a do Brejo segue, atravessando as comarcas do Brejo, Limoeiro, Pau-d'Alho e Recife, banhando as vilas do Limoeiro e Pau-d'Alho e muitas outras povoações, num leito de rochas de sua fonte até a comarca de Pau-d'Alho, é arenoso daí até o Recife, e se lança no oceano depois de ter feito um curso de 80 léguas pouco mais ou menos."

Se em O Rio já se revelava, além do cuidadoso estudo da hidrografia do Capibaribe, uma preocupação fundamental com a miséria que o rio corta, com os retirantes que o acompanham, nas 12 primeiras cenas de Morte e Vida Severina, o poeta dá voz ao retirante Severino que, fugindo da morte, segue as águas do rio Capibaribe desde a serra da Costela até sua foz em Recife. Vejamos estas cenas:

1
Para compor o primeiro monólogo de Severino, assim como todos os outros monólogos do livro, João Cabral de Melo Neto tomou como modelo o romanceiro ibérico. Como os romances portugueses medievais, os monólogos são compostos em medida velha, em versos redondilhos maiores ou heptassílabos, e apresentam rimas alternadas, algumas perfeitas ou consoantes e a grande maioria toante, entre vogais, como as prefere João Cabral. O monólogo de abertura, composto por 64 versos, pode ser dividido em três partes. Nos trinta primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao público/leitor, mas esbarra na falta de individualidade, na despersonalização do sertanejo depauperado:

O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.


Nestes versos, em que predominam as rimas consoantes, encontramos também referências ao papel dos coronéis na vida do sertão, e temos um isomorfismo, uma identificação total, entre Severino e o local em que vivia, a serra da "Costela", magra e ossuda como o sertanejo esfomeado.


Apresentando-se como um entre tantos retirantes "sem nome", Severino aparece como sinédoque (a parte pelo todo) de todo o povo sofrido do sertão.


Nos 28 versos seguintes Severino apresenta a descrição dos severinos, iguais na forma e no destino de morrer antes dos trinta de tanto tentar tirar algo da terra intratável. Note-se que descrição da vida severina começa pela apresentação da morte severina.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

As rimas neste fragmento já são predominantemente toantes. Severino apresenta a sua vida/morte em 28 versos, exatamente o mesmo número de anos a que, segundo João Cabral, reduzia-se a expectativa média de vida do pernambucano na época: antes dos trinta.

Já nos 6 últimos versos, Severino anuncia o início de sua peregrinação, desistindo de se individualizar, e apresentando-se como o severino que se vê, portanto aquele que representa todos os outros que os leitores/espectadores devem sempre ter em mente ao acompanhá-lo:

Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

2
A cena seguinte apresenta o primeiro diálogo da peça. Inspirado no folclore Catalão, João Cabral apresenta o encontro de Severino com dois homens que levam um defunto embrulhado em rede para ser enterrado no cemitério de Toritama, sobre o qual o poeta escreve, na mesma época da redação de Morte e Vida Severina, um dos poemas intitulados Cemitério Pernambucano do livro Paisagem com Figuras (1956):


Para que todo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?
A morte nesta região
gera dos mesmos cadáveres?
(...)

No cenário desolado, os irmãos das almas explicam a Severino como e porque morreu o Severino que carregam:

-- E o que guardava a emboscada,
irmãos das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
-- Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
-- E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
-- Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
-- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
-- Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
-- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
-- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
dos intervalos das pedras,
plantava palha.
-- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
-- Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
-- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
-- Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
-- E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
-- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.

O fragmento revela que a disputa pela terra leva ao assassinato do Severino Lavrador. Através da metáfora da ave-bala que quer mais espaço para voar, João Cabral apresenta os proprietários de terra que, matando impunemente lavradores (com ou sem terra), vão conquistando sempre mais espaço para atirar.

Em entrevista recente, Cabral aponta para o humor negro existente em certa passagem desta cena:

"A crítica nunca se preocupou com o humor negro de minha poesia. Leia Dois Parlamentos, por exemplo. É puro humor negro. Em Morte e Vida Severina, também existe humor negro. Você lembra daquele trecho: "Mais sorte tem o defunto / irmão das almas / pois já não fará na volta / a caminhada"? Pois bem. A origem disso é uma história que me contaram na Espanha. Dizem que, na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: "Puxa, como faz frio neste lugar". Ao que um dos soldados respondeu: "Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta. Foi assim que essa frase foi parar no meio de Morte e Vida Severina. Há mais humor negro do que isso?"


3
O monólogo apresenta a insegurança de Severino quanto a que caminho seguir, pois o seu guia, o Capibaribe, secara devido à seca do verão. Cabe lembrar que, de fato, o rio Capibaribe é, desde a sua foz até a cidade de Limoeiro, intermitente, ou seja, corta ou seca durante o verão. A partir de Limoeiro, na entrada da Zona da Mata, até Recife, trata-se de um rio perene.

Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.


4
Severino aproxima-se de uma casa em que se cantam excelências para um defunto chamado Severino. Composta em versos livres, esta cena caracteriza-se pela ironia. Um homem, fora da casa, vai colocando as palavras dos cantadores na perspectiva da vida de não, de privação, que se leva no sertão:

-- Finado Severino,
quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
-- Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
-- Finado Severino,
etc...
-- Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
-- Finado Severino,
etc...
-- Dize que coisas de não,
ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.

5
Desanimado por encontrar apenas morte, quando procurava vida, Severino pensa em interromper a viagem, procurar um trabalho e ir vivendo por lá mesmo:

só morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?

A morte severina já havia sido descrita no primeiro monólogo e somente agora Severino se refere à vida severina. Severino não encontra vida nem mesmo no rio que julgava perene e de quem se aproxima no desejo de não mais continuar.

6
Dialogando com uma mulher à janela, Severino descobre que na região não há trabalho para lavradores como ele, apenas profissionais ligados à morte, rezadeiras como ela, coveiros, ou mesmo farmacêuticos e médicos, têm algo a fazer por lá:

-- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente,
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.


7
Continuando a viagem, Severino alcança a Zona da Mata, que o deixa deslumbrado:

-- Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quanto mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nessa terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?

Mas Severino não encontra ninguém à vista neste paraíso, apenas avista um cemitério. Sua ingenuidade reveste até o campo santo de otimismo:

Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.

8
A ilusão de Severino com a Zona da Mata é logo quebrada quando se aproxima do cemitério e ouve o que dizem do morto os seus amigos:

-- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
-- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
-- Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
-- É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
-- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
-- É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
Trata-se, portanto, da mesma morte severina, que persegue o lavrador onde ele esteja.

9
Neste monólogo, Severino de certa maneira contradiz o monólogo anterior, em que se mostrava otimista em relação à Zona da Mata. Inicia-se com o verso: Nunca esperei muita coisa. Esperava apenas fugir da estatística que assustara João Cabral: da morte antes dos trinta. Decepcionado com o que ouvira no cemitério, decide apressar o passo para chegar logo ao Recife, pois:

(...) não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça ,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.

10
Mesmo chegando ao Recife, o retirante não escapa da morte. Senta-se para descansar exatamente ao pé do muro de um cemitério e escuta a conversa de dois coveiros:

-- Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos de enterrá-los em terra seca.
-- Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
-- O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
-- E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
-- Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
-- E esse povo lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitérios esperando.
-- Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.



Não há como não lembrar, em relação a esta cena, o célebre diálogo dos coveiros no Ato V, Cena I, da peça Hamlet, de Shakespeare. Ao retornar a Elsenor, Hamlet pára no cemitério e ouve os coveiros (apresentados por Shakespeare como clowns: bobos, palhaços) conversarem sobre o suicídio de sua amada Ofélia. A conversa é absurda, mas não deixa de ter pontos de contato com a situação de Severino. Diz um dos coveiros: "Se o homem vai à água e se afoga, de qualquer modo, queira ou não queira, ele vai, presta atenção nisso. Mas a água vai a ele e o afoga, ele não se afoga - "ergum", aquele que não é culpado de sua própria morte não abrevia a sua própria vida."

11
O último monólogo de Severino inicia-se, como o anterior, com o verso Nunca esperei muita coisa. Desiludido com o que alcançara, Severino se dirige a um cais do rio Capibaribe e reflete sobre a chegada a Recife:

E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:


O retirante, chegando a seu objetivo, contempla pela primeira vez a idéia do suicídio. Jogar-se, como a Ofélia de Shakespeare, às águas. É bom lembrar que tudo o que o lavrador encontrara até aqui fora a morte. Se só a morte dele se aproxima, por que não se entregar definitivamente a ela?

12
Severino está por se atirar ao rio quando dele se aproxima José, o mestre carpina , a quem o retirante faz uma série de perguntas, todas respondidas com sabedoria, realismo e prudência:

-- Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
(...)
-- Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
A conversa é interrompida quando Severino faz a questão crucial:

-- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

Neste ponto se inicia o Presépio que finaliza a peça. Interrompida a conversa, Severino e o mestre carpina assistem ao espetáculo do nascimento do filho de José.

O Presépio ou O Encontro com a Vida

As cinco cenas seguintes da peça apresentam o Presépio dentro da peça. Todas elas foram extraídas, quase literalmente, do folclore pernambucano, mais especificamente do livro de Pereira da Costa, Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, publicado originalmente em 1908.


13
Uma mulher anuncia ao mestre carpina que seu filho nascera:

Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado.
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dentro da vida
ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido.

Trata-se de uma resposta a Severino, que indagara sobre saltar da vida para a morte. Aqui se dá o contrário, a criança salta para a vida.



Em Pereira da Costa encontramos a seguinte estrofe na Loa do anjo anunciando as pastoras o nascimento do messias:

Pastoras, belas pastoras,
Que na relva estais deitadas
Descansais, e não sabeis,
Que a luz do céu é chegada?

14
O fragmento seguinte, como todo o Presépio, é inspirado no material recolhido por Pereira da Costa, que registrou nas Jornadas:

Todo o céu e terra
Vos cantem louvor,
Ó Menino Deus,
Nosso redentor.

João Cabral, ironicamente, adapta a fala dos vizinhos que se aproximam da casa do mestre carpina para:

-- Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
-- Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.


Certamente o poeta se refere aqui ao famoso ensaio do sociólogo recifense Gilberto Freyre intitulado Sobrados e Mocambos (1936). A ironia está em tornar sedutores os mocambos (habitações miseráveis) ao celebrá-los como de certa forma o fez Gilberto Freyre.

15
As pessoas trazem presentes para o recém-nascido. Em Pereira da Costa temos as Ofertas das Pastoras, em que se lê:

Minha pobreza tal é
Que uma oferta não achei!
Na aldeia não encontrei
Cousa que fizesse fé;

Em Morte e Vida Severina, temos a reelaboração:

-- Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.



João Cabral adapta o original à situação de vida das populações ribeirinhas ao Capibaribe, tornando concretos e locais os presentes oferecidos. Nesta cena enumera uma série de localidades - cidades pernambucanas e bairros de Recife - de onde se originariam os presentes:

--Eis ostras chegadas agora.
apanhadas no cais da Aurora.
--Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
--Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
--Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
--Siris apanhados no lamaçal
que há no avesso da rua Imperial.
--Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
--Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.

João Cabral de Melo Neto, jogando com os nomes tão sugestivos - como já o notara Manuel Bandeira em Evocação do Recife - das ruas e bairros de Recife, cria um jogo quase surrealista. Na verdade, para quem não sabe que estes são nomes de bairros, a passagem é completamente surrealista.

16
Duas ciganas prevêem o futuro da criança. Enquanto em Pereira da Costa uma delas era pessimista e a outra otimista, em Morte e Vida Severina a variação das previsões se dá pelo fato da primeira cigana prognosticar um futuro enlameado, terminando como pescador de siri e camarão, e a segunda preconiza-o como operário, mudando-se das margens do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe, o outro rio que corta Recife:

Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.


17
A última cena do Presépio apresenta todos os visitantes do recém-nascido elogiando, ainda seguindo Pereira da Costa, a beleza da criança. Trata-se de uma beleza diferente: pálida, franzina, fraca e magra, mas é beleza que é a afirmação da vida, o brotar da novidade:

-- De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
(...)
-- Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
(...)
-- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
-- Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
-- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
-- Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
-- E belo porque com o novo
todo o velho contagia.

18
Terminado o Presépio, o mestre carpina está pronto para responder à pergunta de Severino:

-- Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

Curiosamente, a peça se encerra sem qualquer resposta de Severino. Em algumas montagens os encenadores colocaram a última estrofe na boca de Severino e não, como está claro no texto, na do mestre carpina. Esse procedimento vem apenas reforçar a mensagem final da peça: a de que mesmo a vida quase morte severina, aparentemente sem saída ou esperança, pode e deve ser vivida.


fonte:
http://fredbar.sites.uol.com.br/mvs.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário