domingo, 21 de novembro de 2010

DICA IMPORTANTE!!!

Aos alunos que tiverem dificuldades nos trabalhos que a professora  Sara passou, sugiro que leiam o texto Ecos de Otelo em Dom Casmurro http://literaturainfoco.blogspot.com/2010/08/ecos-de-otelo-em-dom-casmurro.html. Qualquer dúvida que tenham, podem entrar em contato comigo através do meu e-mail k.t.e.r.i.n.e@hotmail.com.

Boa sorte!!!

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ecos de Otelo em Dom Casmurro




Maria Isaura Rodrigues Pinto(UERJ e UNIPLI)



Colocações preliminares



É nosso propósito, no presente trabalho, realizar uma leitura intertextual, que nos permita observar de que forma a tragédia Otelo, de Shakespeare, recortada e reconduzida, atualiza-se no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Objetivamos examinar, no romance, a recorrência temática, as alusões explícitas em relação à tragédia shakespeariana (comprováveis, principalmente, nos capítulos LXII, LXXII, XXXV) e a correspondência entre os personagens no nível do enunciado e da enunciação - aspectos que levam o leitor ao reconhecimento do gesto intertextual que aproxima as duas obras.



O discurso literário é um espaço que permite a posse, absorção e reexecução de textos anteriores que, em relação dialética com o novo texto, passam do estatuto de pré-textos para o de pretexto na elaboração do discurso ficcional. É a partir desse procedimento comum à produção literária, que a escritura machadiana, apresentando-se como mosaico, insere faces de Otelo no jogo parodístico, em que o elemento ciúme funciona como motivo que leva a uma discussão mais ampla: a da mentalidade conservadora e opressora da classe patriarcal e oligárquica, vigente no final do Segundo Reinado.



A narrativa de Dom Casmurro, ao recontextualizar Otelo, assume um caráter alegórico / paródico devido à articulação dialógica que estabelece com a série extra-literária, isso faculta a emersão de sentidos múltiplos que correspondem a potencialidades não construídas na historiografia oficial.



O gesto intertextual



A remissão constante a pré-textos literários, presente na obra de Machado, atesta a freqüência do fenômeno da intertextualidade, reafirmando o fato de a obra literária ser parte de um patrimônio público circulante, frente ao qual o ato de criar torna-se um gesto que inevitavelmente repete, embora de maneira diferente, o já construído. A esse respeito, assim se pronuncia Barthes: “o escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas, de as contrariar umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas” (BARTHES, 1987: 52).



A constatação de que, no interior do enunciado literário, entrecruzam-se escritas anteriores diversas, possibilitando o reaparecimento de elementos de uma obra em outra, levou Júlia Kristeva a afirmar que “Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974: 64). A obra literária é um “espaço textual múltiplo” em que coexistem diferentes discursos. Desse modo, “o enunciado poético é um subconjunto de um conjunto maior, que é o espaço dos textos aplicados em novos conjuntos” (KRISTEVA, 1974: 174). Pensamos como Laurent Jenny que “se pode omitir por tanto tempo este aspecto da obra literária, foi porque o seu código cegava de tão evidente” (JENNY, 1979: 6).



É comum a repercussão de grandes obras, elas perpassam os séculos repetidas, transformadas, parodiadas. Convertem-se em herança universal e seus ecos se fazem ouvir em outras obras com tons e matizes diferentes. O texto machadiano, ao reexecutar, inverter e transcontextualizar textos clássicos, constitui-se num espaço plural em que se podem ler múltiplos textos que, por sua vez, também possuem ancestrais na série literária, com os quais se relacionam no que diz respeito à forma, ao gênero e ao tema. Para Jacques Derrida, “um texto é sempre depositário de elementos vindos de outros textos, o que vem apontar então para o caráter intertextual que deverá ter sua leitura” (DERRIDA, 1975: 93).



O próprio teatro trágico de Shakespeare, tão presente na obra de Machado, quando recolhe, prolonga e transforma as tradições do antigo teatro dramático, torna-se uma síntese de textos dramáticos de épocas precedentes. Em Shakespeare, a tragédia antiga de ação cede lugar à tragédia de caráter. Como nos mostra Anatol Rosenfeld:



Poder-se-ia dizer que, no drama grego o caráter é função da ação, ao passo que no drama shakespeariano a ação é função do caráter - fato que em boa parte explica a construção diversa do teatro shakespeariano: as famosas unidades clássicas de ação, lugar e tempo se tornam em certa medida supérfluas quando uma nova unidade deflui do caráter central que domina a peça (ROSENFELD; 1969: 137).



A importância atribuída à pintura de caracteres, no teatro de Shakespeare, aponta para a valorização do individual, para apreciação das particularidades irrepetíveis. O destino não depende mais de forças transcendentes, de poderes que estão acima do herói; o destino está implícito no caráter que, quando desregrado, leva ao desastre, à ruína, ao dilaceramento. Em Otelo, por exemplo, o herói é individualmente caracterizado, é um ser peculiar, marcado pelo seu conflito íntimo.



Para escrever Otelo, Shakespeare vai buscar o assunto numa novela italiana, produzida por Giraldi Cinthio no século XVI (SANT’ANNA, 1988: 84). A partir de recodificação atualizadora da novela, o dramaturgo elabora uma tragédia que se torna universalmente conhecida. A base temática da peça é o amor - um amor imenso e apaixonado que acaba levando, por razões de ciúme, o herói mouro ao assassinato de Desdêmona e, posteriormente, ao suicídio, pois descobre ter sido injusta a sua ação violenta.



A escritura de Dom Casmurro retoma, por sua vez, a linha temática de Otelo - amor, casamento, traição. No romance, surge um novo Otelo que, de posse da palavra, conta ao leitor o seu idílio de adolescência que, apesar das dificuldades, evolui até o casamento, quando se julga traído e resolve vingar-se da mulher (Capitu) e do filho (Ezequiel), que supõe não ser seu, enviando-os para a Europa, onde morrem. Dom Casmurro é Otelo metamorfoseado, que maldiz Desdêmona e apresenta a punição aplicada à mulher e ao filho como sendo justa. O gesto intertextual de Machado repete, de maneira inovadora, o passado no presente, dando continuidade ao eco trágico. Pode-se dizer, portanto, que se ouvem, em Dom Casmurro, ecos de Otelo que ressoam aqui e ali, em novo tom.



Esse efeito de eco, que faz com que a leitura de um texto nos lembre de outro(s) texto(s), é visto por Barthes como uma “lembrança circular” (BARTHES, 1977: 49). A circularidade faculta ao leitor desfrutar dos esquemas e das transgressões das origens que propiciam o aparecimento de novos textos.



Na escritura de Dom Casmurro, a obra fonte, ao ser recontextualizada, ajusta-se à realidade nacional. A síntese bitextual origina um novo texto que veicula, metaforicamente, a crítica às convenções sociais, vigentes no período de transição da Monarquia para a República. O discurso machadiano, tecendo pelo avesso a História, lanceta a aparência bem composta do mundo aristocrático e desvela, na sua estrutura mais profunda, o lado fútil, opressor e injusto da classe dominante, dedicada a manter o poder patriarcal e seu absolutismo.



A atitude intertextual, empreendida por Machado, processa um complexo jogo textual que confere ao romance um duplo caráter de referencialidade: referência, por contigüidade, ao texto (tema) clássico Otelo e referência, pelo viés da paródia e da alegoria, ao contexto histórico-social do final do Segundo Reinado.



Em Dom Casmurro, a questão do ciúme e do hipotético adultério não se limitam a ser um delicado problema moral e particular do protagonista. Nada mais significativo que essa perspectiva ética, que envolve relações familiares, para representar um também delicado momento da história do país. A obra reconstitui o perfil da família oligárquica e patriarcal da época, marcada por pesados preconceitos impostos à mulher.



O texto encena alegoricamente, através da trama doméstica, um rígido sistema de classes, baseado na escravidão, que gera uma classe dominante, propensa a um obsessivo conservadorismo mental. A reprodução da casa de Matacavalos, do Engenho Novo, traduz o desejo do personagem narrador de manutenção e perpetuação desses valores, embora a justificativa apresentada por ele, no início do romance, seja outra: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”.



No espaço de construção do alegórico, o texto machadiano diz o “outro” que representa a voz individual ou social silenciada pelo poder vigente. Metaforizando a História, o romance aponta para uma nova e diferente maneira de ler o convencional, descortinando novos valores.
Contudo, como o texto alegórico, em geral, significa outra coisa que não corresponde ao sentido imediatamente apresentado, é preciso que a leitura do romance ultrapasse o nível do explícito para que se possa alcançar, na sua camada subjacente, o sentido potencial que lá se encontra.

Um tema recorrente e suas variações



Em Dom Casmurro, o tratamento dado ao tema do ciúme, as alusões diretas, feitas à Otelo, e a visível correspondência entre os personagens do romance e da tragédia permitem-nos relacionar as duas obras e considerar Dom Casmurro uma paródia de Otelo. Como veremos a seguir, no texto machadiano, o texto de Otelo é evocado e, simultaneamente, transgredido em muitos de seus aspectos. Segundo Linda Hutcheon, “a paródia procura de fato a diferenciação no seu relacionamento com o seu modelo” (HUTCHEON, 1989: 55).



Três são os capítulos que aludem diretamente a Otelo, sugerindo o clima dramático. São eles: “Uma ponta de Iago” (capítulo LXII), “Uma reforma dramática” (capítulo LXXII) e “Otelo” (capítulo CXXXV). Em “Uma ponta de Iago”, quem funciona como o embusteiro é José Dias; embora não nutra por Bentinho (Dom Casmurro, quando jovem) o ódio e a inveja do alferes da tragédia shakespeariana, nem tampouco deseje a sua desgraça, como o outro almeja para o mouro. José Dias é o agregado da família de Bentinho e se alia à mãe do rapaz para impedir a união dos jovens enamorados. Dona Glória não deseja que Bentinho e Capitu fiquem juntos por preconceito de classe (a família de Capitu não tem posses) e pelo voto feito de tornar o filho padre.



No capítulo “Uma ponta de Iago”, vamos encontrar José Dias numa de suas visitas a Bentinho, no seminário. O agregado, minando a relação entre o jovem casal, desencadeia a primeira crise do ciúme, ao insinuar que Capitu mantinha-se alegre, como sempre, na distância e que não tardaria a pegar algum peralta da vizinhança. Essas insinuações envenenam o íntimo do seminarista, fazendo nascer o ciúme, “sentimento cruel e desconhecido” que acaba tomando conta de seu espírito frágil. No decorrer da narrativa, observamos que tal sentimento não se concretiza nem em homicídio nem em suicídio, como ocorre em Otelo; adquire, no entanto, uma progressão crescente que o arrasta para uma casmurrice irremediável: “Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver”.



No outro capítulo, “Uma reforma dramática”, o destino aparece personificado. Ele é comparado com os dramaturgos que não antecipam os fatos. A imagem do destino como dramaturgo diz a vida como encenação, farsa, sendo essa uma das idéias que serve de suporte argumental à narrativa. O homem, nessa perspectiva, é máscara sem rosto no palco da existência. Pelo humor, ocorre a reversão - a responsabilidade do espetáculo fica por conta dos espectadores. Quem ocupa o palco e faz parte da encenação é o público: “Tão certo é que o destino como todos os dramaturgos não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes e os espectadores vão dormir”.



A partir dessa alegoria, o narrador propõe uma mudança no gênero dramático - a quebra da ordenação linear dos acontecimentos: “Nesse gênero há porventura alguma coisa que reformar, e eu proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim”. Em seguida, tomando para exemplo Otelo, o narrador faz uma demonstração. Conclui a explanação dizendo que o objetivo da inversão seria explicar nos últimos atos o desfecho, contido no primeiro ato, pois assim o espectador guardaria consigo “uma boa impressão de ternura e amor”.



Considerando Dom Casmurro uma reescritura de Otelo, tais considerações apresentam-se como uma reflexão metalingüística que diz respeito ao regime de flasch-back, adotado na escritura do romance, que tem o seu final colocado no início.



Ao narrador-personagem que, agindo como Iago, no plano de enunciação, tenta incriminar Capitu, é mais conveniente tal procedimento, pois, começando pelo final pode demonstrar que conhece com profundidade os fatos e a mulher, o que imprime validade ao seu relato. Percebemos, portanto, que o narrador atua em causa própria, ao propor a mudança no esquema da tragédia.



Dom Casmurro conta, recorrendo à memória, no aqui e agora da ficção, o que já ocorreu. A narração memoralista do bacharel e ex-seminarista, pontuada de subterfúgios próprios da linguagem jurídica, é, na verdade, um grande exercício de retórica que visa a culpar Capitu de adultério e a fazer a defesa de Bentinho. A reconstituição do passado funciona como estratégia que lhe permite argumentar que na menina dissimulada de antes já se prenunciava a mulher indigna de depois. Para obter a adesão do leitor, narra inúmeros acontecimentos que reforçam o tema do fingimento de Capitu. O episódio do muro (capítulo XIV), por exemplo, é usado com o intuito de enfatizar em Capitu a arte de mentir e dar outro rumo à conversa. Entretanto, o seu próprio discurso o trai e, mais adiante, o relato do encontro de Bentinho com Prima Justina, que o espera na varanda (capítulo XXI), mostra, significativamente, que sua reação é idêntica a dele. Trata-se de um procedimento comum ao adolescente da época, que inserido na rígida comunidade aristocrática do final do século, diante de sua ação cerceadora, não vê outra alternativa senão entregar-se ao jogo social.



A análise cuidadosa do discurso do narrador-personagem nos revela que sua retórica é uma retórica do provável e não do provado, uma vez que se fundamenta em provas circunstanciais e argumentos que podem ser facilmente revertidos. No capítulo “Otelo”, o personagem-narrador nos fala de sua ida ao teatro, quando foi assistir à tragédia shakespeariana. Identifica-se na platéia com a ira do mouro e mentalmente aproxima Desdêmona de Capitu pelo contraste:




Desdêmona é a amorosa e pura esposa, vítima de uma punição injusta a que é instigado Otelo pelas calúnias de Iago. Capitu, pelo contrário, como quer nos fazer acreditar o narrador, é falsa, enganosa, calculista. Merece, por isso, punição mais cruel do que o asfixiamento praticado pelo mouro para tirar a vida de Desdêmona. A idéia de assassinato substitui a anterior, que era a de suicídio: “O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu deveria morrer”.



A leitura do romance nos mostra que tais pensamentos não se efetivam - Bentinho não mata Capitu (embora de forma ardilosa a destrua), nem tampouco se suicida. O impulso de violência física que a decisão do mouro lhe inspira é abrandado. Bentinho, perspicazmente, encontra uma outra solução: renega mãe e filho; enviando-os para o exílio. Procedendo assim, mantém as aparências:



(...) pedia-me que a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhes, como se acabasse de viver com ela. (capítulo CXLI).



O seu modo de agir premeditado e frio deixa delineada a distância que o separa do herói trágico, arrebatado e íntegro. Ao tentar utilizar a alusão a Otelo como argumento persuasivo que reafirma a culpa de Capitu pela marca da diferença em relação à Desdêmona, Dom Casmurro abre em seu próprio discurso uma brecha, em que se pode ler o espaço que o separa da inteireza de caráter do herói mouro e, num sentido inverso, o tanto que há nele do caráter malicioso e calculista de Iago.



Por outro lado, o capítulo, construído com base no paralelismo antitético entre os protagonistas, reafirma, por remissão à tragédia, a confluência entre as duas obras. Nos três capítulos, as alusões funcionam como índices de intertextualidade. A recodificação da tragédia, dentro da experiência do narrador-personagem, dá margem para que surja a escritura de Dom Casmurro, estabelecendo a diferença, no âmago da semelhança.



Ao operar a passagem de um gênero para outro, Machado substitui as múltiplas vozes que se entrecruzam no palco pela voz solitária do narrador rememorante que, com propósito definido, vai buscar no passado, através das lembranças, outras vozes já silenciadas.



A narrativa é a retrospectiva da vida do próprio narrador, a quem é atribuída ficticiamente a escritura da obra. Toda a responsabilidade do ato de narrar fica por conta desse narrador de primeira pessoa que, desprovido da onisciência peculiar do narrador de terceira pessoa, fornece uma visão unilateral dos fatos, com os quais tenta convencer o leitor (e a si mesmo) de que fora traído. O resultado da adoção do ponto de vista interno é a ambigüidade, ficando a questão do adultério em aberto. A retórica do narrador-personagem, que se pretende convincente e eficaz, concretiza-se como contraditória e insuficiente; mostra, em suas fissuras, trata-se do discurso de uma pessoa com lapsos de memória, desconfiada, imaginosa e insegura.



No capítulo LIX, o narrador revela que sua memória é fraca: “Não, não, a minha memória não é boa”; anteriormente, no capítulo XL, confessara sua fértil imaginação: “Já conheceis as minhas fantasias”. Tais dados dão ao leitor subsídios para que possa desmanchar as malhas retóricas do discurso sutilmente elaborado por Dom Casmurro, uma vez que se pode concluir que sua memória fraca embaraça os fatos e até mesmo os olvida, distorcendo-os e falseando-os, devido à imaginação:



Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com as que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão (capítulo LIX).



O texto machadiano, restrito aos limites da memória do narrador-personagem, constitui-se em expediente literário, conduzido nos termos de uma acusação (“Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro” capítulo XXXVIII). Acusação em defesa, ou melhor, com uma débil defesa, apenas esboçada no capítulo, já indicado anteriormente:



-Não Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!
..........................................................................................
- Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus, eu creio... Mas não falemos nisto, não nos fica bem dizer mais nada.



A tentativa de defesa é imediatamente invalidada no capítulo seguinte pelo discurso autoritário do narrador-personagem:



Palavra que estive e pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: -“Mamãe, mamãe! é hora da missa!” restitui-me a consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fiz-me confissão pura.



O narrador busca instaurar um jogo espetacular e fazer do leitor a sua imagem, pois assim o convencimento do outro implicaria o seu próprio convencimento. Alcançado o desejo de convencimento, ficaria ele livre das “inquietas sombras” (capítulo II).



O personagem Bentinho emerge de Dom Casmurro. Ele é o duplo do narrador. Reconstituído pela memória de Dom Casmurro, é trazido do passado para o presente. Sua configuração e a reconstituição de sua vida são frutos da memória provocada que serve ao interesse pessoal do narrador.



Pelo ciúme e pela ação destruidora, Bentinho aproxima-se de Otelo, embora não assimile do mouro os traços de herói, pelo contrário, acomodação e hesitação são aspectos de sua personalidade. Bentinho é um homem comum, inserido no dia-a-dia de uma sociedade decadente, onde as relações se marcam pela inautenticidade, num constante jogo de simulacros.


Nas duas obras, o poder da palavra assume especial relevo. Em Otelo, a fala pérfida de Iago macula a honestidade de Desdêmona aos olhos do mouro e provoca a morte de ambos. Na relação Otelo / Desdêmona, é o poder da palavra do guerreiro que seduz a filha do senador de Veneza e determina o desequilíbrio da ordem familiar - a jovem foge de casa para se casar com o herói. No romance Dom Casmurro, o poder da palavra é dirigido para fins interesseiros e egoístas. José Dias, por exemplo, agindo de acordo com a vontade de D. Glória, é quem lança a primeira acusação contra Capitu, valendo-se da metáfora incriminadora - “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (capítulo XXV).



Assim como Iago na peça, José Dias inaugura sua atuação no romance, tecendo uma intriga familiar:



-Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los (capítulo III).
Para a metáfora construída por José Dias, convergem outras metáforas igualmente pejorativas que são elaboradas por Dom Casmurro para caracterizar negativamente Capitu. A metáfora “olhos de ressaca” (capítulo XXXII), por exemplo, estigmatiza a personagem pelo olhar, reiterando a colocação inicial do agregado.



Dom Casmurro instala seu discurso habilmente no senso comum, a fim de promover a identificação e o reconhecimento. Com a metáfora “olhos de ressaca”, busca pôr em evidência a idéia generalizada de que “Os olhos são o espelho da alma” e assim fazer com que o leitor acredite que Capitu possui uma má índole - seus olhos, traiçoeiros como o mar, atraem para destruir.



No último capítulo, a fala do narrador, metaforicamente construída, baseia-se em pensamentos pré-concebidos e traduz, mais uma vez, o desejo de persuasão: “Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” (capítulo CXLCIII).



No romance, diferente do que ocorre na tragédia entre Otelo e Desdêmona, o julgamento que Betinho faz de Capitu não se altera. Não há, na narrativa, espaço para arrependimento, nem para o sentimento de culpa. o narrador fecha o romance, reafirmando sarcasticamente:
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou restos dos restos, a saber, qua a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! (capítulo CXLVIII).



A tragicidade que rege o momento de arrependimento, tão tocante em Otelo, não ressoa no texto machadiano. O trágico no romance liga-se, não à trajetória específica de um personagem, a seu engano e a sua queda, mas ao procedimento humano falso e mesquinho. Em Machado, trata-se do trágico do vazio, do nada que resta por detrás da permanente máscara humana.



A acusação de infidelidade aproxima Capitu de Desdêmona. Ambas encontram-se envolvidas numa situação dramática que culmina com trágico desfecho. Em relação à Capitu, a trama se torna ainda mais complexa, pois esta vê o próprio filho ser usado como prova de adultério. Tudo parece conspirar contra ela, até mesmo a natureza - menino assemelha-se a Escobar: “mas, haja ou não testemunha alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela” (capítulo CXXXVII). O ciúme faz com que Bentinho despreze Ezequiel e lhe deseje morte de lepra. Tal idéia, que passa pela mente de Bentinho, permite supor que, embora de maneira momentânea, ele deseja que a natureza seja sua cúmplice e conclua cruelmente a sua vingança, comendo a carne daquele que crê ser uma prova concreta da traição: “Comigo disse que uma das conseqüências dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pegasse a lepra...” (capítulo CXLV).



Quanto a Escobar e Cássio, ambos representam, respectivamente, para Dom Casmurro e Otelo, a hipocrisia. Em Otelo essa idéia perdura até que é aclarado o engano do mouro e toda a intriga, elaborada por Iago, vem à tona; em Dom Casmurro, esse pensamento é sustentado pelo narrador até o final.



As poucas lágrimas, derramadas por Capitu durante o velório de Escobar, instalam definitivamente em Bentinho a inquietude e a desconfiança, que o levarão, muitos anos depois de transcorrido o drama, à escritura do romance com a intenção não declarada, mas depreensível, de persuadir o leitor e a si mesmo do fundamento do seu ciúme.



Alegorizaçãoda perspectiva histórico-social



A pequena intriga dos personagens - a de amor com trágico final - deixa passar a perspectiva histórico-social, uma vez que, além da realidade própria do personagem, os costumes e mentalidade da época inserem-se no processo enunciativo, tornando-se material poético discursivo. A esse respeito nos fala Gledson:



O que parece um detalhe banal (a admiração de José Dias por Padre Feijó, ou pelos primeiros atos do Pio IX com o Papa) ou uma digressão, como o capítulo da Ópera - se interpretados corretamente, encaixam-se num quadro realista extraordinariamente multifacetado, no qual a vida psicológica, sexual, religiosa, política e ideológica do período nos é apresentada como um todo interligado, tendo Bento naturalmente como centro (GLEDSON, 1986, p.14-15).



O texto clássico, atualizado na narrativa machadiana através da paródia, põe em cena a retórica de Dom Casmurro para ser pensada. A linguagem do narrador, querendo esconder seus reais intentos de incriminação, acaba entregando-se à decifração e revelando-se como um jogo de disfarces. Pelas fendas, que fragilizam o seu discurso, podemos entrever a crítica machadiana ao frívolo cotidiano da sociedade carioca, na época do Segundo Reinado. A tragédia, no romance, transforma-se em alegoria bem construída que remete a um momento de transição - passagem da Monarquia para a República.



A reescritura de Otelo realiza, na estrutura literária, o desvelamento de sentidos ocultos na historiografia oficial. Esse procedimento intertextual engendra o jogo parodístico que possibilita a construção de personagens cujas ações e pensamentos sintetizam a visão de mundo de determinadas classes: Bentinho, filho de uma viúva ligada à estrutura agrária do Império, representa, como personagem, o conservadorismo, o despotismo do chefe masculino da família oligárquica. Seu discurso é o discurso do poder, encoberto pela capa do senso comum. O personagem é o representante pleno de um momento histórico-social que está em decadência.



Escobar é o homem da matemática, do comércio, dos negócios de café, não representa como Bentinho a tradição aristocrática patriarcalista do Império; é o capitalista, o homem do futuro que vai marcar a República. Através dele, alegoricamente, o processo de transição é apontado.
Capitu, a filha dos vizinhos pobres, meio dependentes de D. Glória, preenche os requisitos de individuação - tem senso de independência, clareza mental e firmeza - qualidades ausentes em Bentinho. A personagem exemplifica a classe média que começa a se formar na República. Nesse sentido, ela se coloca em oposição a D. Glória e a Bentinho. Partindo do universal (Otelo), o romance Dom Casmurro realiza-se como obra particular na qual o drama individual leva ao social, ao histórico, ao nacional.



Ao dar a palavra a Dom Casmurro, Machado situa a narrativa na visão de mundo da classe dominante e a encena, para através de seu próprio discurso, criticá-la. A obra mostra uma sociedade escravocrata com uma classe dirigente conservadora que se move num mundo de aparências, onde impera a vacuidade. No romance, o enfoque da atuação dos membros dessa classe revela as suas contradições e seus mascaramentos.



O discurso ceticista de Machado segue a linha filosófica de Schopenhauer que concebe a vida como espetáculo teatral, em que se desempenham papéis. O viver reduz-se então a uma farsa e o homem, ao desejo de prestígio e poder. Anatol Rosenfeld assim nos fala sobre o pensamento filosófico de Schopenhauer:



Toda a realidade, principalmente a humana, é concebida como um jogo pirandelliano de máscaras, é pura aparência e “representação” (termo psicológico-filosófico que conserva na sua obra a conotação de teatral) que encobrem a verdadeira realidade da irracional vontade de viver, do egoísmo atroz, do instinto boçal e animalesco (ROSENFELD, 1969, p.175).



Mais especificamente, o conflito do romance restringe-se ao âmbito familiar cujo universo correspondente ao modelo: oligarcas, agregados e escravos. O livro ilustra, através do registro do cotidiano, o esquema rígido dessa estrutura familiar na qual a mulher ocupa lugar subalterno, o amor é cerceado e o casamento é sinônimo de propriedade.



A fala do narrador-personagem, situada no senso comum, é um repertório de estereótipos sociais que, traduzidos por provérbios, correntes na linguagem popular, representam o bom senso. Com base nesses pensamentos estereotipados, Bentinho constrói a sua acusação, sem querer deixar lugar nem mesmo para a hipótese da inocência. Para assegurar a eficácia de seu discurso, vai buscar apoio bíblico e cita o bom conselho de Jesus: “Não tenhas ciúme de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti” (capítulo CXLVIII). Neste ponto, a acusação assume um certo tom de dúvida, não em relação ao adultério, mas em relação ao motivo que o teria provocado - foi ele motivado pelo ciúme ou em Capitu menina já habitava a mulher adúltera?



Buscar um outro caminho de leitura, que não seja o sinalizado pelo narrador, é ver o avesso da questão, é pôr à mostra um segundo plano discordante. É perceber que sua retórica, camuflada pela sabedoria popular, é um ato intelectual opressor, típico da classe dominante, que nega a palavra ao mais fraco. Para que esse sentido alegórico possa ser alcançado, torna-se necessário inverter o rumo da incriminação, pois, dessa forma, a voz do “outro”, a Desdêmona exilada, poderá ser ouvida em contraponto com a voz do “mesmo”.



A repetição da trama básica do Otelo alcança em Dom Casmurro um resultado alegórico que, operando no nível mais profundo, desafia o leitor a desautomatizar-se de um sentido convencional institucionalizado. Essa possível interpretação alegórica conduz o leitor à reflexão crítica do social que se revela, quando cai a máscara, como um sistema despótico e cruel.



Considerações finais



O diálogo entre os dois textos - Otelo e Dom Casmurro -, pelo viés da paródia e da alegoria, torna possível a leitura do contexto histórico-social na estrutura literária. Dom Casmurro, no nível do comentário, do incidente e do enredo - calcado no ciúme - descortina um mundo aristocrático, em que o poder patriarcal é absoluto e destrutivo.



O pequeno grupo familiar (parentes e dependentes), que a escritura de Machado engendra, capta e representa aspectos da realidade social e humana. Através dos flagrantes representativos do cotidiano familiar, devidamente selecionados e estruturados de forma a compor o clima dramático do romance, pode-se ver, numa tomada mais ampla, o homem egoísta e descompromissado atuando no palco da vida social.



Referências bibliográficas



ASSIS, Machado de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1985.
BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980.
------. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 1977.
------. O rumor da língua. Lisboa: Edições 70, 1987.
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sexta-feira, 9 de julho de 2010

O Cortiço



Tendo como cenário uma habitação coletiva, o romance difunde as teses naturalistas, que explicam o comportamento dos personagens com base na influência do meio, da raça e do momento histórico

Ao ser lançado, em 1890, O Cortiço teve boa recepção da crítica, chegando a obscurecer escritores do nível de Machado de Assis. Isso se deve ao fato de Aluísio de Azevedo estar mais em sintonia com a doutrina naturalista, que gozava de grande prestígio na Europa. O livro é composto de 23 capítulos, que relatam a vida em uma habitação coletiva de pessoas pobres (cortiço) na cidade do Rio de Janeiro.
O romance tornou-se peça-chave para o melhor entendimento do Brasil do século XIX. Evidentemente, como obra literária, ele não pode ser entendido como um documento histórico da época. Mas não há como ignorar que a ideologia e as relações sociais representadas de modo fictício em O Cortiço estavam muito presentes no país.

RIGOR CIENTÍFICO
Essa criação de Aluísio de Azevedo tem como influência maior o romance L’Assommoir, do escritor francês Émile Zola, que prescreve um rigor científico na representação da realidade. A intenção do método naturalista era fazer uma crítica contundente e coerente de uma realidade corrompida. Zola e, neste caso, Aluísio combatem, como princípio teórico, a degradação causada pela mistura de raças.
Por isso, os dois romances naturalistas são constituídos de espaços nos quais convivem desvalidos de várias etnias. Esses espaços se tornam personagens do romance.

É o caso do cortiço, que se projeta na obra mais do que os próprios personagens que ali vivem. Um exemplo pode ser visto no seguinte trecho:

“E durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.”

O narrador compara o cortiço a uma estrutura biológica (floresta), um organismo vivo que cresce e se desenvolve, aumentando as forças daninhas e determinando o caráter moral de quem habita seu interior.

NARRADOR
A obra é narrada em terceira pessoa, com narrador onisciente (que tem conhecimento de tudo), como propunha o movimento naturalista. O narrador tem poder total na estrutura do romance: entra no pensamento dos personagens, faz julgamentos e tenta comprovar, como se fosse um cientista, as influências do meio, da raça e do momento histórico.

O foco da narração, a princípio, mantém uma aparência de imparcialidade, como se o narrador se apartasse, à semelhança de um deus, do mundo por ele criado. No entanto, isso é ilusório, porque o procedimento de representar a realidade de forma objetiva já configura uma posição ideologicamente tendenciosa.

TEMPO

Em O Cortiço, o tempo é trabalhado de maneira linear, com princípio, meio e desfecho da narrativa. A história se desenrola no Brasil do século XIX, sem precisão de datas. Há, no entanto, que ressaltar a relação do tempo com o desenvolvimento do cortiço e com o enriquecimento de João Romão.

ESPAÇO

São dois os espaços explorados na obra. O primeiro é o cortiço, amontoado de casebres mal-arranjados, onde os pobres vivem. Esse espaço representa a mistura de raças e a promiscuidade das classes baixas. Funciona como um organismo vivo. Junto ao cortiço estão a pedreira e a taverna do português João Romão.

O segundo espaço, que fica ao lado do cortiço, é o sobrado aristocratizante do comerciante Miranda e de sua família. O sobrado representa a burguesia ascendente do século XIX. Esses espaços fictícios são enquadrados no cenário do bairro de Botafogo, explorando a exuberante natureza local como meio determinante. Dessa maneira, o sol abrasador do litoral americano funciona como elemento corruptor do homem local.

ENREDO

O livro narra inicialmente a saga de João Romão rumo ao enriquecimento. Para acumular capital, ele explora os empregados e se utiliza até do furto para conseguir atingir seus objetivos. João Romão é o dono do cortiço, da taverna e da pedreira. Sua amante, Bertoleza, o ajuda de domingo a domingo, trabalhando sem descanso.

Em oposição a João Romão, surge a figura de Miranda, o comerciante bem estabelecido que cria uma disputa acirrada com o taverneiro por uma braça de terra que deseja comprar para aumentar seu quintal. Não havendo consenso, há o rompimento provisório de relações entre os dois.

Com inveja de Miranda, que possui condição social mais elevada, João Romão trabalha ardorosamente e passa por privações para enriquecer mais que seu oponente. Um fato, no entanto, muda a perspectiva do dono do cortiço. Quando Miranda recebe o título de barão, João Romão entende que não basta ganhar dinheiro, é necessário também ostentar uma posição social reconhecida, freqüentar ambientes requintados, adquirir roupas finas, ir ao teatro, ler romances, ou seja, participar ativamente da vida burguesa.

No cortiço, paralelamente, estão os moradores de menor ambição financeira. Destacam-se Rita Baiana e Capoeira Firmo, Jerônimo e Piedade. Um exemplo de como o romance procura demonstrar a má influência do meio sobre o homem é o caso do português Jerônimo, que tem uma vida exemplar até cair nas graças da mulata Rita Baiana. Opera-se uma transformação no português trabalhador, que muda todos os seus hábitos.

A relação entre Miranda e João Romão melhora quando o comerciante recebe o título de barão e passa a ter superioridade garantida sobre o oponente. Para imitar as conquistas do rival, João Romão promove várias mudanças na estalagem, que agora ostenta ares aristocráticos.
O cortiço todo também muda, perdendo o caráter desorganizado e miserável para se transformar na Vila João Romão.

O dono do cortiço aproxima-se da família de Miranda e pede a mão da filha do comerciante em casamento. Há, no entanto, o empecilho representado por Bertoleza, que, percebendo as manobras de Romão para se livrar dela, exige usufruir os bens acumulados a seu lado.
Para se ver livre da amante, que atrapalha seus planos de ascensão social, Romão a denuncia a seus donos como escrava fugida. Em um gesto de desespero, prestes a ser capturada, Bertoleza comete o suicídio, deixando o caminho livre para o casamento de Romão.

ALEGORIA DO BRASIL

Mais do que empregar os preceitos do naturalismo, a obra mostra práticas recorrentes no Brasil do século XIX. Na situação de capitalismo incipiente, o explorador vivia muito próximo ao explorado, daí a estalagem de João Romão estar junto aos pobres moradores do cortiço. Ao lado, o burguês Miranda, de projeção social mais elevada que João Romão, vive em seu palacete com ares aristocráticos e teme o crescimento do cortiço. Por isso pode-se dizer que O Cortiço não é somente um romance naturalista, mas uma alegoria do Brasil.

O autor naturalista tinha uma tese a sustentar sua história. A intenção era provar, por meio da obra literária, como o meio, a raça e a história determinam o homem e o levam à degenerescência.
A obra está a serviço de um argumento. Aluísio se propõe a mostrar que a mistura de raças em um mesmo meio desemboca na promiscuidade sexual, moral e na completa degradação humana. Mas, para além disso, o livro apresenta outras questões pertinentes para pensar o Brasil, que ainda são atuais, como a imensa desigualdade social.


Fonte:
http://guiadoestudante.abril.com.br/estude/literatura/materia_415646.shtml


quinta-feira, 8 de julho de 2010

Macunaíma

Capitães da Areia

Memórias de um Sargento de Milícias

O Auto da Barca do Inferno

A Cidade e as Serras

Dom Casmurro

O Cortiço

Iracema

Vidas Secas

Memórias Póstumas de Brás Cubas - Análise



INTRODUÇÃO


Publicado em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas, além de inaugurar o Realismo brasileiro, apresenta as mais radicais experimentações na prosa do país até então. Narrado por um defunto, de forma digressiva e agressiva, o romance apresenta a vida inútil e desperdiçada do anti-herói Brás Cubas. Utilizando recursos narrativos e gráficos inusitados, Machado surpreende a cada página com sua ironia cortante e, acima de tudo, com a inteligência que prende até o leitor mais desconfiado. Antecipando procedimentos modernistas e descobertas da psicanálise, esta obra ácida e irônica de Machado de Assis eleva a literatura brasileira a um patamar jamais antes atingido.

DO ROMANTISMO AO REALISMO

A obra de Machado de Assis pode ser dividida em dois momentos bem distintos: as obras da juventude, com forte influência do Romantismo e seu progressivo amadurecimento, até chegar ao Realismo de suas obras da maturidade. Entre estas, as mais destacadas e consideradas são Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Se os escritores românticos, José de Alencar à frente, conseguiram estabelecer o romance como um gênero literário de respeito no Brasil, foi Machado de Assis quem elevou a prosa brasileira ao nível das melhores escritas no mundo em sua época. Sua obra não almeja mais apenas divertir, moralizar ou afirmar valores nacionais, mas visa esmiuçar o espírito humano, refletindo sobre valores universais, sem jamais perder de vista a realidade brasileira.

O PRIMEIRO ROMANCE PSICOLÓGICO

Com Memórias Póstumas de Brás Cubas a literatura brasileira atingiu a sua maturidade. Marco inicial do Realismo, introduz o romance psicológico na Literatura brasileira. Nesta obra, Machado de Assis desloca o foco de interesse do romance. O seu enfoque central não é a vida social ou a descrição das paisagens, mas a forma como seus personagens vêem e sentem as circunstâncias em que vivem. Em vez de enfatizar os espaços externos, investe na caracterização interior dos personagens, com suas contradições e problemáticas existenciais.

DOIS TIPOS DE REALISMO

O chamado Realismo na Literatura brasileira compreende duas manifestações literárias muito diferentes, ambas marcadas pela oposição à tendência idealizante do Romantismo e pela atitude crítica em relação à sociedade.

De um lado temos o Realismo propriamente dito, ou Realismo Psicológico, inaugurado por Memórias Póstumas de Brás Cubas; de outro, o Realismo-Naturalismo, cujo marco inicial é o romance O Mulato, também de 1881, de Aluísio Azevedo (1857-1913).

A obra mais importante do Realismo-Naturalismo é O Cortiço, de Aluísio Azevedo, editado em 1890. No livro de Azevedo, a trama desenvolve-se em uma habitação coletiva do Rio de Janeiro, onde vivem e circulam operários, prostitutas e personagens das mais variadas classes sociais. A composição desses tipos e do enredo tem a intenção de descrever objetivamente a vida de uma determinada sociedade e retratar seu funcionamento. O Realismo-Naturalismo é cientificista e determinista, considerando que as ações humanas são produtos de leis naturais: do meio, das características hereditárias e do momento histórico.

Já o Realismo Psicológico de Machado de Assis despreza tanta objetividade. O escritor concentra sua narrativa na visão de mundo de seus personagens, expondo suas contradições. A classificação mais adotada para definir a escola literária a que pertence Machado de Assis na segunda fase de sua obra é Realismo Psicológico. O recurso que ele utiliza para discutir a sociedade é a abordagem, em profundidade, da individualidade e do caráter dos personagens.

POUCA AÇÃO E MUITAS SURPRESAS

Na abertura do livro, uma dedicatória escrita sob a forma de um epitáfio anuncia o narrador desse romance inusitado: Brás Cubas, um defunto-autor que começa contando detalhes do seu funeral. Depois de algumas digressões, ele retoma a ordem cronológica dos acontecimentos, relatando a infância e a primeira paixão da adolescência, aos 17 anos, pela cortesã Marcela. Presenteia tanto a amada que o pai, irritado com o gasto excessivo, manda-o estudar Direito em Coimbra, Portugal.

Assim como foi, também volta a chamado do pai porque a mãe está à morte. Namora então Eugênia, a filha de uma amiga pobre da família, enquanto o pai procura arranjar um casamento de interesse com Virgília, a filha de um político, o Conselheiro Dutra. Ela, no entanto, casa-se com um político, Lobo Neves, e posteriormente se torna amante de Brás, mantendo com ele encontros na casa habitada por dona Plácida. Antes de o caso começar, morre o pai de Brás. Começa então um litígio entre ele e a irmã Sabina pela herança.

Em meio a tudo isso, o protagonista Brás reencontra Quincas Borba, amigo dos tempos de escola, que lhe apresenta uma doutrina filosófica que criara, o Humanitismo. Virgília parte para o Norte, acompanhando o marido, nomeado presidente de província. Brás namora então a sobrinha do cunhado Cotrim, mas a garota morre aos 19 anos. Ele, que já se tornara deputado, fracassa na tentativa de virar ministro de Estado. Frustrado, funda um jornal de oposição. Percebe, então, que Quincas Borba está enlouquecendo progressivamente.

Procurado por Virgília, já idosa, Brás ampara dona Plácida, que morre pouco depois. É um período cheio de perdas e decepções: morrem Marcela, o louco Quincas Borba, Lobo Neves e Eugênia aparece em um cortiço. Ao tentar inventar um emplasto que lhe daria a fama tão desejada, Brás Cubas adoece e recebe a visita da ex-amante Virgília e do filho dela. Morre depois de um delírio, aos 64 anos. Decide, então, contar sua vida em detalhes, mas, pouco sistemático que é, e ainda excitado pela experiência da morte, sua narrativa segue a lógica do pensamento.

O caráter inovador de Memórias Póstumas de Brás Cubas não está na história propriamente dita ou na seqüência cronológica dos fatos. A melhor chave para compreender a obra são as reflexões do personagem, como elas se encadeiam e se misturam aos eventos que ele vive.

NARRADOR – O PERSONAGEM CENTRAL

O romance tem uma perspectiva deslocada: é narrado por um defunto, que reconta a própria vida, do fim para o começo, num relato marcado pela franqueza e inseção. "Falo sem temer mais nada", diz o morto. É Brás Cubas, personagem “esférico”, ou seja, de grande densidade psicológica, quem comenta as próprias mudanças. Brás Cubas, classificado pelos críticos como o grande hipócrita da Literatura brasileira, é um sujeito sem objetivos e muito contraditório, sempre rondando a periferia do poder. Típico burguês da segunda metade do século XIX, encarna o homem que passou a vida sem conquistar nenhuma realização efetiva.
Se na infância o personagem fora uma criança abastada e protegida, torna-se um jovem adulto leviano, em busca da melhor maneira de tirar vantagem. Sua conduta fica explícita quando descreve sua formação universitária na Europa:

“Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma; mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto. Tratei-a como tratei o latim – embolsei três versos de Virgílio, dois de Horácio, uma dúzia de locuções morais e política para as despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a ornamentação (...)"

Quando volta ao Brasil, por causa da doença da mãe, se defronta pela primeira vez com a questão da morte e vive então um momento de introspecção e reflexão. Quando reencontra Marcela velha e doente, retoma a idéia da passagem do tempo. A isso Brás chama de teoria das edições da vida, anunciada nos primeiros capítulos, mas comentada muito depois.

“Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição, revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos; defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era elegante, e na encadernação, que era luxuosa.”

Na maturidade, começa a buscar a compensação pela existência sem nada de notável, sem filhos ou realizações: consegue um cargo público, busca notoriedade e respeitabilidade ao querer tornar-se ministro. Pouco antes de morrer, imagina ainda um último modo de se perpetuar: inventando um emplasto, uma medicação sublime.

PERSONAGENS COMPLEMENTARES

Os personagens criados por Machado de Assis entram e saem de cena conforme os pensamentos de Brás Cubas. Entre eles, quem merece maior destaque é Quincas Borba, que, mais tarde, será o personagem-título de outro romance do autor. Ele influencia profundamente o narrador com a sua teoria do Humanitismo. Os dois conheceram-se no colégio e reencontram-se muitos anos depois. Quincas é um mendigo que vai enlouquecendo progressivamente.

Ao morrer, está completamente fora de si. Seu Humanitismo prega que tudo o que acontece na vida faz parte de um quadro maior de preservação da essência humana. A ironia é uma das marcas da obra de Machado de Assis. Nesta obra isso fica claro quando o autor faz com que uma doutrina de valorização da vida seja defendida justamente por um mendigo que morre completamente louco.

No contexto do romance, o Humanitismo convém a Brás para justificar sua existência vazia. A teoria de Quincas Borba dá a ele uma ilusão da descoberta de um sentido para a vida. A morte de Quincas Borba reconduz Brás Cubas ao confronto com a vacuidade de sua existência. Machado confirma assim a tese anunciada no Capítulo 7 – “O delírio”, sobre a perseguição inútil da felicidade.

Quincas Borba é importante porque introduz Brás Cubas na teoria que inventou, o Humanitismo. Na verdade, a teoria do mendigo é uma caricatura que Machado de Assis faz do positivismo e do evolucionismo, teorias científicas e filosóficas em voga na época que atribuem sentido de evolução mesmo às fatalidades da vida.

AS INOVAÇÕES DE MACHADO DE ASSIS

Escritor dedicado à problematização e ao questionamento da função da Literatura, Machado de Assis inova, neste livro, a temática, a estrutura e a linguagem.

Na temática, investe na complexidade dos indivíduos, que retrata sem nenhuma idealização romântica:

“(...) Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis (...)”

Aqui, por exemplo, constrói uma frase realista típica, contrapondo ao romantismo do envolvimento de 15 meses os 11 contos de réis. Ao contrário dos personagens românticos, que se movem por um objetivo, e estabelecem metas ou fazem algo notável, a trajetória de Brás Cubas e dos personagens que o circundam nada tem de especial. Muitas vezes, eles se norteiam, como no caso de Marcela, pelo mais vil dos interesses. No final da vida, Brás Cubas conclui que precisa deixar alguma realização e se anima com a idéia de criar um emplasto com seu nome, algo que o tornaria famoso.

A estrutura de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem uma lógica narrativa surpreendente e inovadora. A seqüência do livro não é determinada pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento das reflexões do personagem. Uma lembrança puxa a outra e o narrador Brás Cubas, que prometera contar uma determinada história, comenta todos os outros fatos que a envolvem, para retomar o tema anunciado muitos capítulos depois. Organizados em blocos curtos, os 160 capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas fluem segundo o ritmo do pensamento do narrador. A aparente falta de coerência da narrativa, permeada por longas digressões, dissimula uma forte coerência interna, oferecendo ao leitor todas as informações para conhecer a visão de mundo de um homem que passou pela vida sem realização nenhuma, apenas ao sabor de seus desejos. Logo nas primeiras páginas, o escritor brinca com a expectativa do leitor de chegar logo às ações do romance. Machado de Assis, por intermédio do seu narrador, se dirige diretamente ao leitor, metalingüisticamente, para comentar o livro. Diz Brás Cubas:

“Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem”.

Ao usar a metalinguagem, Machado convida o leitor a refletir sobre a estrutura da obra e perceber dois níveis de leitura: a que revela diretamente o personagem e a que o faz objeto de crítica do autor.

Machado de Assis foi o mais ousado dos escritores brasileiros anteriores ao Modernismo (1922) na experimentação de novas formas de expressão. Em Memórias Postumas de Brás Cubas mostra sua desconfiança da articulação perfeita entre o texto e a realidade e procura adequar a forma ao conteúdo. Exemplo: para traduzir a frustração de Brás Cubas quando não consegue se tornar ministro, a solução do autor foi deixar o Capítulo 139 em branco. No capítulo seguinte, explica:

“Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do capítulo anterior”.

O autor também questiona a forma tradicional de expressão, acreditando que falta a ela a capacidade plena de levar ao leitor os sentimentos do personagem. É essa preocupação que faz Machado de Assis subverter a forma para adaptá-la ao conteúdo que deseja transmitir, como neste trecho do Capítulo 55 – “O velho diálogo de Adão e Eva” –, em que descreve o auge da paixão entre Brás Cubas e Virgília:


Capítulo LV - O Velho Diálogo de Adão e Eva

Brás Cubas
. . . . . ?
Virgília
. . . . . .

Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .

Virgília
. . . . . . !

Brás Cubas
. . . . . . .

Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . ? . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . .

Virgília
. . . . . . .

Brás Cubas
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . ! . . . . . .
. . ! . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . !

Virgília
. . . . . . . . . . . . . . . . . ?

Brás Cubas
. . . . . . . !

Virgília
. . . . . . . !


A ironia é um dos traços mais marcantes da obra de Machado de Assis e aparece ainda mais acentuada nos chamados romances da maturidade. Pode ser entendida como mais um recurso para combater as verdades absolutas, das quais desacreditava por princípio. A construção irônica prevê sempre outros sentidos para o que é dito.

Machado de Assis utiliza-se da ironia como um recurso para fazer o leitor desconfiar das declarações, pensamentos e conclusões do narrador Brás Cubas.

Ao comentar, no primeiro capítulo, sobre o amigo que lhe presenteia com um empolado discurso fúnebre, o narrador agradece as palavras ditas em tom de comoção exagerada com uma frase certeira:

“Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que lhe deixei".

A digressão é outro elemento importante da linguagem machadiana. Consiste na interrupção do fluxo narrativo, que envereda por assuntos desvinculados do tema inicial, mas mantendo com ele alguma analogia criada pela mente de quem conta. Essa analogia, com algum esforço, pode ser percebida pelo leitor, desde que ele se mantenha atento.

O leitor de Machado é constantemente solicitado a interagir criticamente com a obra, distanciando-se ainda mais do modelo de leitura proposto pelos romances românticos, que mobilizam a emoção e a imaginação.

É o que acontece, por exemplo, na parte inicial do romance, quando Brás Cubas deixa em suspenso por vários capítulos a explicação para sua morte, que prometera desde o início, para passear descomprometidamente por assuntos tão díspares quanto as pirâmides do Egito e a sua árvore genealógica. Quando volta a falar da causa mortis, é para comentar, com ironia "...acabemos de uma vez com o nosso emplasto”. Como se já tivesse explicado antes do que se tratava!


VIDA E OBRA


O gênio que veio do morro


Nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de mulato em uma sociedade ainda escravocrata, paupérrimo, sofrendo de gagueira e epilepsia, nada indicaria que Joaquim Maria Machado de Assis teria, ao morrer em 1908, um enterro de estadista, seguido por milhares de admiradores pelas ruas da cidade em que nasceu, viveu e morreu. Autodidata, aos 15 começa a trabalhar em tipografias, onde conhece escritores importantes, como Manuel Antônio de Almeida. Em 1855 inicia sua carreira literária com a publicação de um poema na revista Marmota Fluminense. Consegue, logo depois, um emprego na Secretaria da Fazenda. Trabalha a vida toda na burocracia, na qual vai galgando posições até ser Ministro substituto. Mas a carreira burocrática é apenas uma forma de ganhar o sustento, ainda que humilde, que o possibilita escrever. Contribui com diversos jornais e revistas e, com a publicação de seus livros de poesia, contos e romances, só vai ganhando em notoriedade e respeito. Em 1869, casa-se, enfrentando grave preconceito racial da família, com a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais. Em 1876, antes mesmo de publicar a parcela de sua obra mais significativa, já é considerado, na companhia de José de Alencar, um dos maiores escritores brasileiros. Em 1881 inicia a publicação dos seus romances realistas. Em 1896 é um dos principais responsáveis pela fundação da Academia Brasileira de Letras, do qual é eleito presidente vitalício. Em 1904 morre Carolina. Quatro anos depois, Machado de Assis, consagrado como o maior escritor brasileiro, é enterrado com pompa no Rio de Janeiro. O mulato paupérrimo do Morro do Livramento tornara-se um dos homens mais respeitados do país.

O poeta

Machado de Assis iniciou sua carreira literária como poeta. Seu livro de estréia foi Crisálidas (1864), que lhe conferiu imediata notoriedade. Embora sua poesia esteja muito aquém da prosa que o imortalizou, nunca deixou de escrever poemas. Em 1870 lança Falenas, em 1875, Americanas e, em 1901, as suas Poesias Completas, que ainda não incluem um dos seus mais famosos poemas, o belo soneto A Carolina, escrito após a morte da esposa, em 1904.

O cronista

Seguindo a linha dos textos de Ao Correr da Pena, de José de Alencar, Machado de Assis contribuiu durante toda a sua carreira com textos breves para jornais, em que comenta os mais variados assuntos da vida do Rio de Janeiro e do país. Esses textos leves, de temática cotidiana, podem ser considerados os precursores da crônica moderna, em que se haveriam de destacar, no século seguinte, escritores como Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade. A produção do Machado cronista se inicia já em 1859 e se estende até 1904, com raras interrupções. Sua produção mais madura foi publicada na colunas do jornal Gazeta de Notícias, em que contribui de 1881 a 1904: Balas de Estalo (1883-1885), Bons Dias! (1888-1889) e principalmente em A Semana (1892-1897).

O crítico

Também para os jornais, Machado de Assis escreveu durante toda a vida textos críticos. Sua produção infindável envolve ensaios teóricos, como O passado, o presente e o futuro da nossa literatura (1858), O ideal do crítico (1865) e Notícia da atual literatura brasileira - instinto de nacionalidade (1873), diversas resenhas críticas importantes, como aquela ao livro O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1878) e inúmeras críticas de teatro.

O contista

Muitos das centenas de contos que Machado de Assis escreveu ao longo da vida se perderam, com o desaparecimento dos números dos jornais em que foram publicados. Outros estão apenas agora sendo republicados em livro. Sua versatilidade como contista é imensa. Escreveu tanto para os jornais mais sentimentalóides quanto para publicações seriíssimas. A qualidade dos contos varia de acordo com a publicação e o público leitor a que se destinavam. Entre as coletâneas de contos que publicou, destacam-se Papéis Avulsos (1882), com o grande conto, ou novela, O Alienista, Teoria do Medalhão e O Espelho, e Várias Histórias (1896) em que se encontram, entre outras obras-primas da concisão e do impacto narrativo, A Causa Secreta, A Cartomante e Um Homem Célebre.

A fase romântica

Entre 1872 e 1878, Machado de Assis começa a publicar romances. Ainda muito influenciado pelo amigo e mestre José de Alencar, publica, com regularidade britânica, um romance a cada dois anos. Em Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá Garcia (1878), temos um Machado ainda romântico, mas antecipando alguns temas e procedimentos de suas obras-primas realistas e, principalmente, conquistando um público leitor que já receberia sua revolução realista com boa vontade.

As obras-primas realistas

A mais importante fase da carreira de Machado de Assis concentra-se na trilogia de romances realistas publicados no final do século. O primeiro deles foi Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Depois, seguiram-se:

Quincas Borba (1891) narra, na terceira pessoa, as desventuras do ingênuo Rubião, herdeiro da fortuna e do cachorro da enlouquecida personagem Quincas Borba, que já aparecia, e morria, no livro anterior. Através dessa personagem, cômica no seu despreparo para as armadilhas da corte, e trágica no seu destino, Machado ao mesmo tempo ironiza e demonstra as teorias darwinistas tão caras aos naturalistas. O ensandecido "humanitismo" de Quincas Borba, herdeiro direto da "luta pela vida" de Darwin, é sintetizado na frase "Ao vencedor, as batatas!", e acaba por ser comprovado tragicamente pela ação espoliadora do casal Sofia / Palha sobre o provinciano protagonista.

Dom Casmurro (1899) apresenta algumas das personagens mais complexas da literatura universal. Narrado pelo velho Bento Santiago, apelidado Dom Casmurro, apresenta a história de seu relacionamento - namoro, casamento e afastamento - com Capitu, sua vizinha de infância. O narrador se esforça por demonstrar o caráter ambíguo e dissimulado tanto de sua esposa quanto de seu melhor amigo, o hábil Escobar, para assim justificar sua convicção de ter sido por eles traído. Como prova da traição, apresenta a semelhança que enxerga em seu filho, Ezequiel, com o amigo, que supõe pai da criança. Mas o esforço é vão. Se consegue construir a imagem de personagens extremamente complexos, nada nos consegue provar, pois o seu próprio caráter é tão fraco, tão inseguro e titubiante, que o leitor passa a desconfiar de seus julgamentos. Assim, além de construir a eterna dúvida (Capitu traiu ou não Bentinho?), Machado de Assis apresenta o primeiro narrador não confiável da literatura brasileira.

Os últimos romances

Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), têm o mesmo narrador personagem, o conselheiro Aires, que pouco age e passa a maior parte da narrativa contemplando placidamente as aventuras amorosas e existenciais dos jovens ao seu redor. A descrição dos dias de perplexidade da população carioca com a proclamação da República, em Esaú e Jacó, é um dos pontos altos da narrativa machadiana.

A Academia Brasileira de Letras

Fundada em 1896, foi um dos mais acalentados sonhos de Machado de Assis no final da vida. Eleito seu primeiro presidente, Machado via na fundação da Academia, nos moldes da Academia Francesa, uma possibilidade de dignificar o trabalho do escritor, acabando com a imagem de malandro boêmio que viera do romantismo, e afirmando-o como um intelectual sério e conseqüente.

Fonte:
http://fredb.sites.uol.com.br/mpbc.html