terça-feira, 3 de agosto de 2010

Ecos de Otelo em Dom Casmurro




Maria Isaura Rodrigues Pinto(UERJ e UNIPLI)



Colocações preliminares



É nosso propósito, no presente trabalho, realizar uma leitura intertextual, que nos permita observar de que forma a tragédia Otelo, de Shakespeare, recortada e reconduzida, atualiza-se no romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Objetivamos examinar, no romance, a recorrência temática, as alusões explícitas em relação à tragédia shakespeariana (comprováveis, principalmente, nos capítulos LXII, LXXII, XXXV) e a correspondência entre os personagens no nível do enunciado e da enunciação - aspectos que levam o leitor ao reconhecimento do gesto intertextual que aproxima as duas obras.



O discurso literário é um espaço que permite a posse, absorção e reexecução de textos anteriores que, em relação dialética com o novo texto, passam do estatuto de pré-textos para o de pretexto na elaboração do discurso ficcional. É a partir desse procedimento comum à produção literária, que a escritura machadiana, apresentando-se como mosaico, insere faces de Otelo no jogo parodístico, em que o elemento ciúme funciona como motivo que leva a uma discussão mais ampla: a da mentalidade conservadora e opressora da classe patriarcal e oligárquica, vigente no final do Segundo Reinado.



A narrativa de Dom Casmurro, ao recontextualizar Otelo, assume um caráter alegórico / paródico devido à articulação dialógica que estabelece com a série extra-literária, isso faculta a emersão de sentidos múltiplos que correspondem a potencialidades não construídas na historiografia oficial.



O gesto intertextual



A remissão constante a pré-textos literários, presente na obra de Machado, atesta a freqüência do fenômeno da intertextualidade, reafirmando o fato de a obra literária ser parte de um patrimônio público circulante, frente ao qual o ato de criar torna-se um gesto que inevitavelmente repete, embora de maneira diferente, o já construído. A esse respeito, assim se pronuncia Barthes: “o escritor não pode deixar de imitar um gesto sempre anterior, nunca original; o seu único poder é o de misturar as escritas, de as contrariar umas às outras, de modo a nunca se apoiar numa delas” (BARTHES, 1987: 52).



A constatação de que, no interior do enunciado literário, entrecruzam-se escritas anteriores diversas, possibilitando o reaparecimento de elementos de uma obra em outra, levou Júlia Kristeva a afirmar que “Todo texto se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto” (KRISTEVA, 1974: 64). A obra literária é um “espaço textual múltiplo” em que coexistem diferentes discursos. Desse modo, “o enunciado poético é um subconjunto de um conjunto maior, que é o espaço dos textos aplicados em novos conjuntos” (KRISTEVA, 1974: 174). Pensamos como Laurent Jenny que “se pode omitir por tanto tempo este aspecto da obra literária, foi porque o seu código cegava de tão evidente” (JENNY, 1979: 6).



É comum a repercussão de grandes obras, elas perpassam os séculos repetidas, transformadas, parodiadas. Convertem-se em herança universal e seus ecos se fazem ouvir em outras obras com tons e matizes diferentes. O texto machadiano, ao reexecutar, inverter e transcontextualizar textos clássicos, constitui-se num espaço plural em que se podem ler múltiplos textos que, por sua vez, também possuem ancestrais na série literária, com os quais se relacionam no que diz respeito à forma, ao gênero e ao tema. Para Jacques Derrida, “um texto é sempre depositário de elementos vindos de outros textos, o que vem apontar então para o caráter intertextual que deverá ter sua leitura” (DERRIDA, 1975: 93).



O próprio teatro trágico de Shakespeare, tão presente na obra de Machado, quando recolhe, prolonga e transforma as tradições do antigo teatro dramático, torna-se uma síntese de textos dramáticos de épocas precedentes. Em Shakespeare, a tragédia antiga de ação cede lugar à tragédia de caráter. Como nos mostra Anatol Rosenfeld:



Poder-se-ia dizer que, no drama grego o caráter é função da ação, ao passo que no drama shakespeariano a ação é função do caráter - fato que em boa parte explica a construção diversa do teatro shakespeariano: as famosas unidades clássicas de ação, lugar e tempo se tornam em certa medida supérfluas quando uma nova unidade deflui do caráter central que domina a peça (ROSENFELD; 1969: 137).



A importância atribuída à pintura de caracteres, no teatro de Shakespeare, aponta para a valorização do individual, para apreciação das particularidades irrepetíveis. O destino não depende mais de forças transcendentes, de poderes que estão acima do herói; o destino está implícito no caráter que, quando desregrado, leva ao desastre, à ruína, ao dilaceramento. Em Otelo, por exemplo, o herói é individualmente caracterizado, é um ser peculiar, marcado pelo seu conflito íntimo.



Para escrever Otelo, Shakespeare vai buscar o assunto numa novela italiana, produzida por Giraldi Cinthio no século XVI (SANT’ANNA, 1988: 84). A partir de recodificação atualizadora da novela, o dramaturgo elabora uma tragédia que se torna universalmente conhecida. A base temática da peça é o amor - um amor imenso e apaixonado que acaba levando, por razões de ciúme, o herói mouro ao assassinato de Desdêmona e, posteriormente, ao suicídio, pois descobre ter sido injusta a sua ação violenta.



A escritura de Dom Casmurro retoma, por sua vez, a linha temática de Otelo - amor, casamento, traição. No romance, surge um novo Otelo que, de posse da palavra, conta ao leitor o seu idílio de adolescência que, apesar das dificuldades, evolui até o casamento, quando se julga traído e resolve vingar-se da mulher (Capitu) e do filho (Ezequiel), que supõe não ser seu, enviando-os para a Europa, onde morrem. Dom Casmurro é Otelo metamorfoseado, que maldiz Desdêmona e apresenta a punição aplicada à mulher e ao filho como sendo justa. O gesto intertextual de Machado repete, de maneira inovadora, o passado no presente, dando continuidade ao eco trágico. Pode-se dizer, portanto, que se ouvem, em Dom Casmurro, ecos de Otelo que ressoam aqui e ali, em novo tom.



Esse efeito de eco, que faz com que a leitura de um texto nos lembre de outro(s) texto(s), é visto por Barthes como uma “lembrança circular” (BARTHES, 1977: 49). A circularidade faculta ao leitor desfrutar dos esquemas e das transgressões das origens que propiciam o aparecimento de novos textos.



Na escritura de Dom Casmurro, a obra fonte, ao ser recontextualizada, ajusta-se à realidade nacional. A síntese bitextual origina um novo texto que veicula, metaforicamente, a crítica às convenções sociais, vigentes no período de transição da Monarquia para a República. O discurso machadiano, tecendo pelo avesso a História, lanceta a aparência bem composta do mundo aristocrático e desvela, na sua estrutura mais profunda, o lado fútil, opressor e injusto da classe dominante, dedicada a manter o poder patriarcal e seu absolutismo.



A atitude intertextual, empreendida por Machado, processa um complexo jogo textual que confere ao romance um duplo caráter de referencialidade: referência, por contigüidade, ao texto (tema) clássico Otelo e referência, pelo viés da paródia e da alegoria, ao contexto histórico-social do final do Segundo Reinado.



Em Dom Casmurro, a questão do ciúme e do hipotético adultério não se limitam a ser um delicado problema moral e particular do protagonista. Nada mais significativo que essa perspectiva ética, que envolve relações familiares, para representar um também delicado momento da história do país. A obra reconstitui o perfil da família oligárquica e patriarcal da época, marcada por pesados preconceitos impostos à mulher.



O texto encena alegoricamente, através da trama doméstica, um rígido sistema de classes, baseado na escravidão, que gera uma classe dominante, propensa a um obsessivo conservadorismo mental. A reprodução da casa de Matacavalos, do Engenho Novo, traduz o desejo do personagem narrador de manutenção e perpetuação desses valores, embora a justificativa apresentada por ele, no início do romance, seja outra: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência”.



No espaço de construção do alegórico, o texto machadiano diz o “outro” que representa a voz individual ou social silenciada pelo poder vigente. Metaforizando a História, o romance aponta para uma nova e diferente maneira de ler o convencional, descortinando novos valores.
Contudo, como o texto alegórico, em geral, significa outra coisa que não corresponde ao sentido imediatamente apresentado, é preciso que a leitura do romance ultrapasse o nível do explícito para que se possa alcançar, na sua camada subjacente, o sentido potencial que lá se encontra.

Um tema recorrente e suas variações



Em Dom Casmurro, o tratamento dado ao tema do ciúme, as alusões diretas, feitas à Otelo, e a visível correspondência entre os personagens do romance e da tragédia permitem-nos relacionar as duas obras e considerar Dom Casmurro uma paródia de Otelo. Como veremos a seguir, no texto machadiano, o texto de Otelo é evocado e, simultaneamente, transgredido em muitos de seus aspectos. Segundo Linda Hutcheon, “a paródia procura de fato a diferenciação no seu relacionamento com o seu modelo” (HUTCHEON, 1989: 55).



Três são os capítulos que aludem diretamente a Otelo, sugerindo o clima dramático. São eles: “Uma ponta de Iago” (capítulo LXII), “Uma reforma dramática” (capítulo LXXII) e “Otelo” (capítulo CXXXV). Em “Uma ponta de Iago”, quem funciona como o embusteiro é José Dias; embora não nutra por Bentinho (Dom Casmurro, quando jovem) o ódio e a inveja do alferes da tragédia shakespeariana, nem tampouco deseje a sua desgraça, como o outro almeja para o mouro. José Dias é o agregado da família de Bentinho e se alia à mãe do rapaz para impedir a união dos jovens enamorados. Dona Glória não deseja que Bentinho e Capitu fiquem juntos por preconceito de classe (a família de Capitu não tem posses) e pelo voto feito de tornar o filho padre.



No capítulo “Uma ponta de Iago”, vamos encontrar José Dias numa de suas visitas a Bentinho, no seminário. O agregado, minando a relação entre o jovem casal, desencadeia a primeira crise do ciúme, ao insinuar que Capitu mantinha-se alegre, como sempre, na distância e que não tardaria a pegar algum peralta da vizinhança. Essas insinuações envenenam o íntimo do seminarista, fazendo nascer o ciúme, “sentimento cruel e desconhecido” que acaba tomando conta de seu espírito frágil. No decorrer da narrativa, observamos que tal sentimento não se concretiza nem em homicídio nem em suicídio, como ocorre em Otelo; adquire, no entanto, uma progressão crescente que o arrasta para uma casmurrice irremediável: “Hoje, que me recolhi à minha casmurrice, não sei se ainda há tal linguagem, mas deve haver”.



No outro capítulo, “Uma reforma dramática”, o destino aparece personificado. Ele é comparado com os dramaturgos que não antecipam os fatos. A imagem do destino como dramaturgo diz a vida como encenação, farsa, sendo essa uma das idéias que serve de suporte argumental à narrativa. O homem, nessa perspectiva, é máscara sem rosto no palco da existência. Pelo humor, ocorre a reversão - a responsabilidade do espetáculo fica por conta dos espectadores. Quem ocupa o palco e faz parte da encenação é o público: “Tão certo é que o destino como todos os dramaturgos não anuncia as peripécias nem o desfecho. Eles chegam a seu tempo, até que o pano cai, apagam-se as luzes e os espectadores vão dormir”.



A partir dessa alegoria, o narrador propõe uma mudança no gênero dramático - a quebra da ordenação linear dos acontecimentos: “Nesse gênero há porventura alguma coisa que reformar, e eu proporia, como ensaio, que as peças começassem pelo fim”. Em seguida, tomando para exemplo Otelo, o narrador faz uma demonstração. Conclui a explanação dizendo que o objetivo da inversão seria explicar nos últimos atos o desfecho, contido no primeiro ato, pois assim o espectador guardaria consigo “uma boa impressão de ternura e amor”.



Considerando Dom Casmurro uma reescritura de Otelo, tais considerações apresentam-se como uma reflexão metalingüística que diz respeito ao regime de flasch-back, adotado na escritura do romance, que tem o seu final colocado no início.



Ao narrador-personagem que, agindo como Iago, no plano de enunciação, tenta incriminar Capitu, é mais conveniente tal procedimento, pois, começando pelo final pode demonstrar que conhece com profundidade os fatos e a mulher, o que imprime validade ao seu relato. Percebemos, portanto, que o narrador atua em causa própria, ao propor a mudança no esquema da tragédia.



Dom Casmurro conta, recorrendo à memória, no aqui e agora da ficção, o que já ocorreu. A narração memoralista do bacharel e ex-seminarista, pontuada de subterfúgios próprios da linguagem jurídica, é, na verdade, um grande exercício de retórica que visa a culpar Capitu de adultério e a fazer a defesa de Bentinho. A reconstituição do passado funciona como estratégia que lhe permite argumentar que na menina dissimulada de antes já se prenunciava a mulher indigna de depois. Para obter a adesão do leitor, narra inúmeros acontecimentos que reforçam o tema do fingimento de Capitu. O episódio do muro (capítulo XIV), por exemplo, é usado com o intuito de enfatizar em Capitu a arte de mentir e dar outro rumo à conversa. Entretanto, o seu próprio discurso o trai e, mais adiante, o relato do encontro de Bentinho com Prima Justina, que o espera na varanda (capítulo XXI), mostra, significativamente, que sua reação é idêntica a dele. Trata-se de um procedimento comum ao adolescente da época, que inserido na rígida comunidade aristocrática do final do século, diante de sua ação cerceadora, não vê outra alternativa senão entregar-se ao jogo social.



A análise cuidadosa do discurso do narrador-personagem nos revela que sua retórica é uma retórica do provável e não do provado, uma vez que se fundamenta em provas circunstanciais e argumentos que podem ser facilmente revertidos. No capítulo “Otelo”, o personagem-narrador nos fala de sua ida ao teatro, quando foi assistir à tragédia shakespeariana. Identifica-se na platéia com a ira do mouro e mentalmente aproxima Desdêmona de Capitu pelo contraste:




Desdêmona é a amorosa e pura esposa, vítima de uma punição injusta a que é instigado Otelo pelas calúnias de Iago. Capitu, pelo contrário, como quer nos fazer acreditar o narrador, é falsa, enganosa, calculista. Merece, por isso, punição mais cruel do que o asfixiamento praticado pelo mouro para tirar a vida de Desdêmona. A idéia de assassinato substitui a anterior, que era a de suicídio: “O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu deveria morrer”.



A leitura do romance nos mostra que tais pensamentos não se efetivam - Bentinho não mata Capitu (embora de forma ardilosa a destrua), nem tampouco se suicida. O impulso de violência física que a decisão do mouro lhe inspira é abrandado. Bentinho, perspicazmente, encontra uma outra solução: renega mãe e filho; enviando-os para o exílio. Procedendo assim, mantém as aparências:



(...) pedia-me que a fosse ver. Embarquei um ano depois, mas não a procurei, e repeti a viagem com o mesmo resultado. Na volta, os que se lembravam dela, queriam notícias, e eu dava-lhes, como se acabasse de viver com ela. (capítulo CXLI).



O seu modo de agir premeditado e frio deixa delineada a distância que o separa do herói trágico, arrebatado e íntegro. Ao tentar utilizar a alusão a Otelo como argumento persuasivo que reafirma a culpa de Capitu pela marca da diferença em relação à Desdêmona, Dom Casmurro abre em seu próprio discurso uma brecha, em que se pode ler o espaço que o separa da inteireza de caráter do herói mouro e, num sentido inverso, o tanto que há nele do caráter malicioso e calculista de Iago.



Por outro lado, o capítulo, construído com base no paralelismo antitético entre os protagonistas, reafirma, por remissão à tragédia, a confluência entre as duas obras. Nos três capítulos, as alusões funcionam como índices de intertextualidade. A recodificação da tragédia, dentro da experiência do narrador-personagem, dá margem para que surja a escritura de Dom Casmurro, estabelecendo a diferença, no âmago da semelhança.



Ao operar a passagem de um gênero para outro, Machado substitui as múltiplas vozes que se entrecruzam no palco pela voz solitária do narrador rememorante que, com propósito definido, vai buscar no passado, através das lembranças, outras vozes já silenciadas.



A narrativa é a retrospectiva da vida do próprio narrador, a quem é atribuída ficticiamente a escritura da obra. Toda a responsabilidade do ato de narrar fica por conta desse narrador de primeira pessoa que, desprovido da onisciência peculiar do narrador de terceira pessoa, fornece uma visão unilateral dos fatos, com os quais tenta convencer o leitor (e a si mesmo) de que fora traído. O resultado da adoção do ponto de vista interno é a ambigüidade, ficando a questão do adultério em aberto. A retórica do narrador-personagem, que se pretende convincente e eficaz, concretiza-se como contraditória e insuficiente; mostra, em suas fissuras, trata-se do discurso de uma pessoa com lapsos de memória, desconfiada, imaginosa e insegura.



No capítulo LIX, o narrador revela que sua memória é fraca: “Não, não, a minha memória não é boa”; anteriormente, no capítulo XL, confessara sua fértil imaginação: “Já conheceis as minhas fantasias”. Tais dados dão ao leitor subsídios para que possa desmanchar as malhas retóricas do discurso sutilmente elaborado por Dom Casmurro, uma vez que se pode concluir que sua memória fraca embaraça os fatos e até mesmo os olvida, distorcendo-os e falseando-os, devido à imaginação:



Como eu invejo os que não esqueceram a cor das primeiras calças que vestiram! Eu não atino com as que enfiei ontem. Juro só que não eram amarelas porque execro essa cor; mas isso mesmo pode ser olvido e confusão (capítulo LIX).



O texto machadiano, restrito aos limites da memória do narrador-personagem, constitui-se em expediente literário, conduzido nos termos de uma acusação (“Grande foi a estupefação de Capitu, e não menor a indignação que lhe sucedeu, tão naturais que fariam duvidar as primeiras testemunhas de vista do nosso foro” capítulo XXXVIII). Acusação em defesa, ou melhor, com uma débil defesa, apenas esboçada no capítulo, já indicado anteriormente:



-Não Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha que tenho defesa, ou peço-lhe desde já a nossa separação: não posso mais!
..........................................................................................
- Sei a razão disto; é a casualidade da semelhança... A vontade de Deus explicará tudo... Ri-se? É natural; apesar do seminário, não acredita em Deus, eu creio... Mas não falemos nisto, não nos fica bem dizer mais nada.



A tentativa de defesa é imediatamente invalidada no capítulo seguinte pelo discurso autoritário do narrador-personagem:



Palavra que estive e pique de crer que era vítima de uma grande ilusão, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: -“Mamãe, mamãe! é hora da missa!” restitui-me a consciência da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusão dela fiz-me confissão pura.



O narrador busca instaurar um jogo espetacular e fazer do leitor a sua imagem, pois assim o convencimento do outro implicaria o seu próprio convencimento. Alcançado o desejo de convencimento, ficaria ele livre das “inquietas sombras” (capítulo II).



O personagem Bentinho emerge de Dom Casmurro. Ele é o duplo do narrador. Reconstituído pela memória de Dom Casmurro, é trazido do passado para o presente. Sua configuração e a reconstituição de sua vida são frutos da memória provocada que serve ao interesse pessoal do narrador.



Pelo ciúme e pela ação destruidora, Bentinho aproxima-se de Otelo, embora não assimile do mouro os traços de herói, pelo contrário, acomodação e hesitação são aspectos de sua personalidade. Bentinho é um homem comum, inserido no dia-a-dia de uma sociedade decadente, onde as relações se marcam pela inautenticidade, num constante jogo de simulacros.


Nas duas obras, o poder da palavra assume especial relevo. Em Otelo, a fala pérfida de Iago macula a honestidade de Desdêmona aos olhos do mouro e provoca a morte de ambos. Na relação Otelo / Desdêmona, é o poder da palavra do guerreiro que seduz a filha do senador de Veneza e determina o desequilíbrio da ordem familiar - a jovem foge de casa para se casar com o herói. No romance Dom Casmurro, o poder da palavra é dirigido para fins interesseiros e egoístas. José Dias, por exemplo, agindo de acordo com a vontade de D. Glória, é quem lança a primeira acusação contra Capitu, valendo-se da metáfora incriminadora - “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (capítulo XXV).



Assim como Iago na peça, José Dias inaugura sua atuação no romance, tecendo uma intriga familiar:



-Há algum tempo estou para lhe dizer isto, mas não me atrevia. Não me parece bonito que o nosso Bentinho ande metido nos cantos com a filha do Tartaruga, e esta é a dificuldade, porque se eles pegam de namoro, a senhora terá muito que lutar para separá-los (capítulo III).
Para a metáfora construída por José Dias, convergem outras metáforas igualmente pejorativas que são elaboradas por Dom Casmurro para caracterizar negativamente Capitu. A metáfora “olhos de ressaca” (capítulo XXXII), por exemplo, estigmatiza a personagem pelo olhar, reiterando a colocação inicial do agregado.



Dom Casmurro instala seu discurso habilmente no senso comum, a fim de promover a identificação e o reconhecimento. Com a metáfora “olhos de ressaca”, busca pôr em evidência a idéia generalizada de que “Os olhos são o espelho da alma” e assim fazer com que o leitor acredite que Capitu possui uma má índole - seus olhos, traiçoeiros como o mar, atraem para destruir.



No último capítulo, a fala do narrador, metaforicamente construída, baseia-se em pensamentos pré-concebidos e traduz, mais uma vez, o desejo de persuasão: “Mas eu creio que não, e tu concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca” (capítulo CXLCIII).



No romance, diferente do que ocorre na tragédia entre Otelo e Desdêmona, o julgamento que Betinho faz de Capitu não se altera. Não há, na narrativa, espaço para arrependimento, nem para o sentimento de culpa. o narrador fecha o romance, reafirmando sarcasticamente:
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou restos dos restos, a saber, qua a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve! (capítulo CXLVIII).



A tragicidade que rege o momento de arrependimento, tão tocante em Otelo, não ressoa no texto machadiano. O trágico no romance liga-se, não à trajetória específica de um personagem, a seu engano e a sua queda, mas ao procedimento humano falso e mesquinho. Em Machado, trata-se do trágico do vazio, do nada que resta por detrás da permanente máscara humana.



A acusação de infidelidade aproxima Capitu de Desdêmona. Ambas encontram-se envolvidas numa situação dramática que culmina com trágico desfecho. Em relação à Capitu, a trama se torna ainda mais complexa, pois esta vê o próprio filho ser usado como prova de adultério. Tudo parece conspirar contra ela, até mesmo a natureza - menino assemelha-se a Escobar: “mas, haja ou não testemunha alugadas, a minha era verdadeira; a própria natureza jurava por si, e eu não queria duvidar dela” (capítulo CXXXVII). O ciúme faz com que Bentinho despreze Ezequiel e lhe deseje morte de lepra. Tal idéia, que passa pela mente de Bentinho, permite supor que, embora de maneira momentânea, ele deseja que a natureza seja sua cúmplice e conclua cruelmente a sua vingança, comendo a carne daquele que crê ser uma prova concreta da traição: “Comigo disse que uma das conseqüências dos amores furtivos do pai era pagar eu as arqueologias do filho; antes lhe pegasse a lepra...” (capítulo CXLV).



Quanto a Escobar e Cássio, ambos representam, respectivamente, para Dom Casmurro e Otelo, a hipocrisia. Em Otelo essa idéia perdura até que é aclarado o engano do mouro e toda a intriga, elaborada por Iago, vem à tona; em Dom Casmurro, esse pensamento é sustentado pelo narrador até o final.



As poucas lágrimas, derramadas por Capitu durante o velório de Escobar, instalam definitivamente em Bentinho a inquietude e a desconfiança, que o levarão, muitos anos depois de transcorrido o drama, à escritura do romance com a intenção não declarada, mas depreensível, de persuadir o leitor e a si mesmo do fundamento do seu ciúme.



Alegorizaçãoda perspectiva histórico-social



A pequena intriga dos personagens - a de amor com trágico final - deixa passar a perspectiva histórico-social, uma vez que, além da realidade própria do personagem, os costumes e mentalidade da época inserem-se no processo enunciativo, tornando-se material poético discursivo. A esse respeito nos fala Gledson:



O que parece um detalhe banal (a admiração de José Dias por Padre Feijó, ou pelos primeiros atos do Pio IX com o Papa) ou uma digressão, como o capítulo da Ópera - se interpretados corretamente, encaixam-se num quadro realista extraordinariamente multifacetado, no qual a vida psicológica, sexual, religiosa, política e ideológica do período nos é apresentada como um todo interligado, tendo Bento naturalmente como centro (GLEDSON, 1986, p.14-15).



O texto clássico, atualizado na narrativa machadiana através da paródia, põe em cena a retórica de Dom Casmurro para ser pensada. A linguagem do narrador, querendo esconder seus reais intentos de incriminação, acaba entregando-se à decifração e revelando-se como um jogo de disfarces. Pelas fendas, que fragilizam o seu discurso, podemos entrever a crítica machadiana ao frívolo cotidiano da sociedade carioca, na época do Segundo Reinado. A tragédia, no romance, transforma-se em alegoria bem construída que remete a um momento de transição - passagem da Monarquia para a República.



A reescritura de Otelo realiza, na estrutura literária, o desvelamento de sentidos ocultos na historiografia oficial. Esse procedimento intertextual engendra o jogo parodístico que possibilita a construção de personagens cujas ações e pensamentos sintetizam a visão de mundo de determinadas classes: Bentinho, filho de uma viúva ligada à estrutura agrária do Império, representa, como personagem, o conservadorismo, o despotismo do chefe masculino da família oligárquica. Seu discurso é o discurso do poder, encoberto pela capa do senso comum. O personagem é o representante pleno de um momento histórico-social que está em decadência.



Escobar é o homem da matemática, do comércio, dos negócios de café, não representa como Bentinho a tradição aristocrática patriarcalista do Império; é o capitalista, o homem do futuro que vai marcar a República. Através dele, alegoricamente, o processo de transição é apontado.
Capitu, a filha dos vizinhos pobres, meio dependentes de D. Glória, preenche os requisitos de individuação - tem senso de independência, clareza mental e firmeza - qualidades ausentes em Bentinho. A personagem exemplifica a classe média que começa a se formar na República. Nesse sentido, ela se coloca em oposição a D. Glória e a Bentinho. Partindo do universal (Otelo), o romance Dom Casmurro realiza-se como obra particular na qual o drama individual leva ao social, ao histórico, ao nacional.



Ao dar a palavra a Dom Casmurro, Machado situa a narrativa na visão de mundo da classe dominante e a encena, para através de seu próprio discurso, criticá-la. A obra mostra uma sociedade escravocrata com uma classe dirigente conservadora que se move num mundo de aparências, onde impera a vacuidade. No romance, o enfoque da atuação dos membros dessa classe revela as suas contradições e seus mascaramentos.



O discurso ceticista de Machado segue a linha filosófica de Schopenhauer que concebe a vida como espetáculo teatral, em que se desempenham papéis. O viver reduz-se então a uma farsa e o homem, ao desejo de prestígio e poder. Anatol Rosenfeld assim nos fala sobre o pensamento filosófico de Schopenhauer:



Toda a realidade, principalmente a humana, é concebida como um jogo pirandelliano de máscaras, é pura aparência e “representação” (termo psicológico-filosófico que conserva na sua obra a conotação de teatral) que encobrem a verdadeira realidade da irracional vontade de viver, do egoísmo atroz, do instinto boçal e animalesco (ROSENFELD, 1969, p.175).



Mais especificamente, o conflito do romance restringe-se ao âmbito familiar cujo universo correspondente ao modelo: oligarcas, agregados e escravos. O livro ilustra, através do registro do cotidiano, o esquema rígido dessa estrutura familiar na qual a mulher ocupa lugar subalterno, o amor é cerceado e o casamento é sinônimo de propriedade.



A fala do narrador-personagem, situada no senso comum, é um repertório de estereótipos sociais que, traduzidos por provérbios, correntes na linguagem popular, representam o bom senso. Com base nesses pensamentos estereotipados, Bentinho constrói a sua acusação, sem querer deixar lugar nem mesmo para a hipótese da inocência. Para assegurar a eficácia de seu discurso, vai buscar apoio bíblico e cita o bom conselho de Jesus: “Não tenhas ciúme de tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a malícia que aprender de ti” (capítulo CXLVIII). Neste ponto, a acusação assume um certo tom de dúvida, não em relação ao adultério, mas em relação ao motivo que o teria provocado - foi ele motivado pelo ciúme ou em Capitu menina já habitava a mulher adúltera?



Buscar um outro caminho de leitura, que não seja o sinalizado pelo narrador, é ver o avesso da questão, é pôr à mostra um segundo plano discordante. É perceber que sua retórica, camuflada pela sabedoria popular, é um ato intelectual opressor, típico da classe dominante, que nega a palavra ao mais fraco. Para que esse sentido alegórico possa ser alcançado, torna-se necessário inverter o rumo da incriminação, pois, dessa forma, a voz do “outro”, a Desdêmona exilada, poderá ser ouvida em contraponto com a voz do “mesmo”.



A repetição da trama básica do Otelo alcança em Dom Casmurro um resultado alegórico que, operando no nível mais profundo, desafia o leitor a desautomatizar-se de um sentido convencional institucionalizado. Essa possível interpretação alegórica conduz o leitor à reflexão crítica do social que se revela, quando cai a máscara, como um sistema despótico e cruel.



Considerações finais



O diálogo entre os dois textos - Otelo e Dom Casmurro -, pelo viés da paródia e da alegoria, torna possível a leitura do contexto histórico-social na estrutura literária. Dom Casmurro, no nível do comentário, do incidente e do enredo - calcado no ciúme - descortina um mundo aristocrático, em que o poder patriarcal é absoluto e destrutivo.



O pequeno grupo familiar (parentes e dependentes), que a escritura de Machado engendra, capta e representa aspectos da realidade social e humana. Através dos flagrantes representativos do cotidiano familiar, devidamente selecionados e estruturados de forma a compor o clima dramático do romance, pode-se ver, numa tomada mais ampla, o homem egoísta e descompromissado atuando no palco da vida social.



Referências bibliográficas



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FAORO, Raymundo. Machado de Assis: a pirâmide e o trapézio. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974.
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