terça-feira, 22 de junho de 2010

Contos de Fadas e Psicanálise



Marilena Chauí - Professora de Filosofia na Usp e autora de vários livros


(...) Poderíamos considerar que numa sociedade como a nossa, que dessacralizou a realidade e eliminou quase todos os ritos, os contos funcionam como espécie de "rito de passagem" antecipado. Isto é, não só auxiliam a criança a lidar com o presente, mas ainda a preparam para o que está por vir, a futura separação de seu mundo familiar e a entrada no universo dos adultos.

Do ponto de vista da repressão sexual, os contos são interessantes porque são ambíguos. Por um lado, possuem um aspecto lúdico e liberador ao deixarem vir á tona desejos, fantasias, manifestações da sexualidade infantil, oferecendo à criança recursos para lidar com eles no imaginário; por outro lado, possuem um aspecto pedagógico que reforça os padrões da repressão sexual vigente, uma vez que orientam a criança para desejos apresentados como permitidos ou lícitos, narram as punições a que estão sujeitos os transgressores e prescrevem o momento em que a sexualidade genital deve ser aceita, qual sua forma correta ou normal. Reforçam, dessa maneira, inúmeros estereótipos da feminilidade e da masculinidade, ainda que, se tomarmos os contos em conjunto, os embaralhem bastante.

Se a psicanálise estiver certa ao diferenciar fases da sexualidade infantil, podemos observar que a repressão atua nos contos seguindo essas fases: as crianças são punidas se muito gulosas (fase oral), se perdulárias ou avarentas (fase anal), se muito curiosas (fase fálica ou genital). Em certo sentido, os contos operam com a divisão estabelecida por Freud, entre o princípio do prazer (excesso de gula, de avareza ou desperdício, de curiosidade) e o princípio de realidade (aprender a protelar o prazer, a discriminar os afetos e condutas, a moderar os impulsos).

Para facilitar a exposição, vamos dividir os contos em dois grandes "tipos": aqueles que asseguram à criança o retorno à casa e ao amor dos familiares, depois de aventuras em que se perdeu tanto por desobediência quanto por necessidade, e aqueles que lhe asseguram ser chegada a hora da partida, que isso é bom, desejável e definitivo.

Nos contos que designamos aqui como contos de retorno, a sexualidade aparece nas formas indiretas ou disfarçadas da genitalidade, que são apresentadas como ameaçadoras, precisando ser evitadas porque a criança ainda não está preparada para elas.

Isto não significa que a criança seja assexuada, pelo contrário, mas que a sexualidade permitida ainda é oral ou anal. Em contrapartida, nos contos que aqui designamos como contos de partida, a sexualidade genital terá prioridade sobre as outras, com as quais vem misturada, e pode ser aceita depois que as personagens passarem por várias provas que atestem sua maturidade.

No Chapeuzinho Vermelho (que, na canção infantil, é dito "Chapeuzinho cor de fogo", o fogo sendo um dos símbolos e uma das metáforas mais usados em nossa cultura para referir-se ao sexo), o lobo é mau, prepara-se para comer a menina ingênua que, muito novinha, o confunde com a vovó, precisando ser salva pelo caçador que, com um fuzil (na canção: "com tiro certo"), mata o animal agressor e a reconduz à casa da mamãe.

Há duas figuras masculinas antagônicas: o sedutor animalesco e perverso, que usa a boca (tanto para seduzir como para comer) e o salvador humano e bom, que usa o fuzil (tanto para caçar quanto para salvar).

Há três figuras femininas: a mãe (ausente) que previne a filha dos perigos da floresta; a vovó (velha e doente) que nada pode fazer, e a menina (incauta) que se surpreende com o tamanho dos órgãos do lobo e, fascinada, cai em sua goela.

A sexualidade do lobo aparece não só como animalesca e destrutiva, mas também "infantilizada" ou oral, visto que pretende digerir a menina (o que poderia sugerir, de nossa parte, uma pequena reflexão sobre a gíria sexual brasileira no uso do verbo comer).

O comer também aparece num outro conto de retorno, João e Maria. A curiosidade de João, depois acrescida pela gula diante da casa de confeitos, arrasta os irmãozinhos para a armadilha da bruxa (que é, na simbologia e mitologia da Europa medieval uma das figuras mais sexualizadas, possuída pelo demônio (o sexo), ou tendo feito um pacto com ele).

A astúcia salva as crianças quando João exibe o rabinho mole e fino de um camundongo no lugar do dedo grosso e duro (o pênis adulto), evitando a queda do menino no caldeirão fervente (outro símbolo europeu para o sexo feminino, tanto a vagina quanto o útero).

Há tempo para que o pai surja e os reconduza à casa, depois de matar a bruxa. (A imagem do caldeirão fervente também aparece em O Casamento de Dona Baratinha, o noivo nele caindo, vítima da gula, não podendo consumar o casamento.)

Nos contos de partida, a adolescência é atravessada submetida a provações e provas até ser ultrapassada rumo ao amor e à vida nova. Nesses contos, a adolescência é um período de feitiço, encantamento, sortilégio que tanto podem ser castigos merecidos quanto imerecidos, mas que servem de refúgio ou de proteção para a passagem da infância à idade adulta.

É um período de espera: Gata Borralheira na cozinha, Branca de Neve semimorta no caixão de vidro, Bela Adormecida em sono profundo, Pele-de-Burro sob o disfarce repelente. Heróis e heroínas se escondem, se disfarçam, adoecem, adormecem, são metamorfoseados (como os príncipes nos Três Cisnes, a princesa em A Moura Torta, o príncipe em A Bela e a Fera, etc.).

Em geral, as meninas adormecem ou viram animaizinhos frágeis (pomba, corça) e os meninos adoecem, viram animais repugnantes (freqüentemente, sapos, o sapo sendo um dos companheiros simbólicos principais das bruxas) ou viram pássaros (o pássaro sendo considerado um símbolo para o órgão sexual masculino). A expressão, muito usada antigamente, "esperar pelo príncipe encantado" ou "pela princesa encantada" não queria dizer apenas a espera por alguém muito bom e belo, mas também a necessidade de aguardar os que estão enfeitiçados porque ainda não chegou a hora do desencantamento.

Gata Borralheira vai ao baile (primeiros jogos amorosos, como a dança dos insetos), mas não pode ficar até o fim (a relação sexual) sob pena de perder os encantamentos antes da hora. Deve retornar à casa, deixando o príncipe doente (de desejo), e com o par de sapatinhos momentaneamente desfeito, ficando com um deles, que conserva escondido sob as roupas.

Borralheira e o príncipe devem aguardar que os emissários do rei-pai a encontrem, calce os sapatos, completando o par. Sapatos que são presente de uma mulher boa e poderosa (fada) e que pertencem apenas à heroína, de nada adiantando os truques das filhas da madrasta (cortar artelhos, calcanhar) para deles se apossarem. As filhas da madrasta querem sangrar antes da hora e sobretudo querem sangrar com o que não lhes pertence, de direito (relação sexual ilícita, repressivamente punida pelo conto).

Branca de Neve, cujo corpo não foi violentado pelo fiel servidor (não lhe arrancou o coração, a virgindade, substituindo-o pelo de uma corça) será vítima da gula e da sedução da madrasta-bruxa, permanecendo imóvel num caixão de cristal (seus órgãos sexuais) com a maçã atravessada na garganta, sem poder engoli-la.

Além da simbologia religiosa em torno da tentação pelo fruto proibido (o sexo), o vermelho trazido pela bruxa liga-se também à simbologia medieval onde as bruxas fabricam filtros de amor usando esperma e sangue menstrual, bruxaria que indica não só a puberdade de Branca, mas também a necessidade de expeli-la para poder reviver. Despertará por um descuido dos anões vigilantes - a casinha na floresta, os pequenos seres trabalhadores que penetram em túneis escuros no fundo da terra (que na simbologia sexual é imagem da mãe fértil), um "Mestre", um a ter sono permanente, outro a espirrar, outro não podendo falar, não foram proteção suficiente, a morte aparente tendo sido necessária para reter Branca. (Seria interessante observar a necrofilia do belo príncipe, pois pretende levar a morta em sua companhia.)

Bela Adormecida será vítima da curiosidade que a faz tocar num objeto proibido - o fuso, onde se fere (fluxo menstrual), mas sem ter culpa, visto que fora mantida na ignorância da maldição que sobre ela pesava. Sangrando antes da hora, adormece, devendo aguardar que um príncipe valente, enfrentando e vencendo provas, graças à espada mágica (também símbolo do órgão viril), venha salvá-la com um beijo. Em sua forma genital, o sexo aqui aparece de duas maneiras: prematuro e ferida mortal, no fuso; oportuno e vivificante, na espada.

De modo geral, heróis e heroínas são órfãos de pais (os heróis) ou de mãe (as heroínas), vítimas do ciúme de madrastas, padrastos ou irmãos e irmãs mais velhos. Essa armação tem uma finalidade.

Graças a ela, preservam-se as imagens de pais, mães e irmãos bons (pai morto na guerra, mãe morta no parto, irmãos menores desamparados), enquanto a criança pode lidar livremente com as imagens más.

Há um desdobramento de cada membro da família em duas personagens, o que permite à criança realizar na fantasia a elaboração de uma experiência cotidiana e real, isto é, a da divisão de uma mesma pessoa em "boa" e "má", e dos sentimentos de amor e ódio que também experimenta. Lutar contra padrastos, madrastas e seus filhos é mais fácil do que lutar com pai, mãe e irmãos.

Freqüentemente, os contos se estruturam de modo mais complexo. Em A Bela Adormecida, por exemplo, há várias figuras femininas superpostas: a mãe ausente; a fada má que maldiz a criança; a fada boa que substitui a morte pelo sono e promete um salvador; a velha fiandeira, desobediente, que conservou o fuso proibido; a menina curiosa e desprevenida que, andando por lugares desconhecidos e subindo por uma escada (símbolo da relação sexual) se fere e adormece, à espera da espada e do beijo.

A fada má pune o rei que a excluiu de um festa dedicada à fertilidade (o nascimento da princesa), a punição consistindo em decretar a morte da menina quando esta apresentar os sinais da fertilidade (maldição que simboliza o medo das meninas diante da menstruação e da alteração de seus corpos).

A morte da menina decorre da curiosidade que a faz antecipar com um objeto errado (masturbação) a sexualidade.

A fada boa está encarregada de contrabalançar o equívoco (e o descuido masculino, que não suprimiu todos os fusos) colocando a menina na tranqüilidade sonolenta da espera e entregando a espada ao príncipe (que, portanto, recebe o objeto mágico de uma mulher, pois todos nascem de mulheres). O beijo final contrabalança o medo que a espada poderia provocar, pois é instrumento de guerra e morte (o beijo simboliza, em muitas culturas, não só amor e amizade, mas também um pacto ou uma aliança).

Na maioria dos contos, o pai é indiretamente responsável pela maldição ou pelas desventuras da filha. Mas em A Bela e a Fera o pai é diretamente responsável ao arrancar de um jardim que não lhe pertence, uma rosa branca, despertando a Fera. Há no roubo da flor a simbolização do desejo e do medo inconsciente das meninas de serem raptadas ou violentadas.

A figura masculina se divide: há o pai-bom e o homem-fera, divisão que obriga Bela a viver com o segundo para salvar o primeiro. Contudo, desejando rever o pai doente, Bela deixa que Fera, abandonada, também adoeça (de desejo).

A imaturidade de Bela, seu medo da Fera, seu desejo de permanecer junto ao pai só são superados quando, pela piedade e pela sedução, retorna ao castelo da Fera, dedica-se a ela e, ao fazê-lo, quebra o encanto, surgindo o belo príncipe com quem viverá. O conto se desenvolve como processo de amadurecimento da heroína e de constituição da imagem masculina através de seus desejos. Do pai à fera, da fera ao príncipe.

Em Pele-de-Burro, o desejo incestuoso do pai é a mola do conto. A primeira tentativa da filha para evitar o incesto fracassa: pede vestido feitos de Natureza (sol, mar e lua), mas a Natureza não é contrária ao incesto, o rei podendo perfeitamente conseguir os vestidos.

A princesa deve, então, fugir. Mas seu disfarce indica os efeitos do desejo incestuoso do rei: cobre-se numa pele de burro, animalizando-se. Num outro reino (que não o da Natureza), a princesa irá aos bailes da corte, mas, como a Gata Borralheira, não pode ficar até o fim para não correr o risco de ser descoberta. Porém, o príncipe apaixonado ficará doente e o remédio virá no bolo feito pela princesa. Bolo que possui o mesmo sentido e o mesmo efeito que a espada mágica, porém com a marca do feminino: é no interior do bolo que se encontra o remédio salvador, o anel.

Embora os contos reforcem estereótipos de feminilidade e masculinidade e preconceitos sobre homem e mulher, são ambíguos e ricos e por isso não são sexistas: a salvação pode ser trazida tanto pelo herói quanto pela heroína. As fadas, aliás, possuem um objeto mágico supremo, talismã dos talismãs: a vara de condão, sendo seres excepcionais porque reúnem atributos femininos e masculinos, sonho e fantasia de todas as crianças (e não só delas, evidentemente).

Em Os Três Cisnes, é a menina quem quebra o encantamento dos irmãos, tudo dependendo de sua força de vontade (ficar em absoluto silêncio durante sete anos) ou moderar o princípio de prazer, e de sua coragem e destreza para acertar as setas, no momento exato, nos corações dos três cisnes, matando-os para que vivam os irmãos.

Ela é portadora de um objeto viril - o arco e flecha -, sabendo usá-lo. Sua destreza é ímpar: deve usar, e usa, o arco tendo os olhos vendados (..... a venda nos olhos é símbolo medieval para a morte. Este conto, portanto, realiza uma verdadeira crítica da relação sexo-morte, pois morte dos cisnes é nascimento de sua virilidade, por obra de uma mulher. E o incesto, aqui, é óbvio).

Além de não serem sexistas e de contornarem o incesto, os contos não condenam o sexo com animais: é o amor e o afeto pelos animais que permitirá desencantá-los.

Alguns psicanalistas consideram que as primeiras manifestações da sexualidade estão liadas ao que denominam escolha de objeto e objeto parcial.

A mãe (ou quem faz o papel de mãe para a criança) seria o primeiro objeto escolhido e seus seios seriam o primeiro objeto parcial.

Por outro lado, como a mãe não está permanentemente presente, acarinhando e alimentando a criança, esta desenvolve fantasias sobre o objeto parcial: ausente ou faltando, torna-se um mau objeto; presente e satisfatório, torna-se um bom objeto.

A criança desenvolve também fantasias de agressão e de ternura com relação a esses objetos, sobretudo a da perseguição, no caso do mau objeto. Assim, nos contos, frutas, plantas, flores e alimentos venenosos ou ardilosos seriam objetos parciais maus ou persecutórios, mas contrabalançados por bolos, filtros, poções, jóias que trazem saúde e quebram feitiços, sendo objetos parciais bons, com os quais a criança e os contos realizam a reparação do objeto escolhido, amado e odiado.

O objeto parcial persecutório mais perfeito, porém, é aquele que não é devorado pela criança, mas que ameaça devorá-la. Nos contos: os dragões, os lobos, os ogros, as tempestades, as florestas sombrias, os castelos cheios de armadilhas. E para contrabalançar tamanha perseguição e reparar o objeto amado, nos contos de retorno, adultos salvam as crianças da perseguição e, nos contos de partida, a sexualidade amadurecida e vencedora das fantasias persecutórias mais antigas aparece no próprio herói ou na heroína cujos objetos mágicos (oferecidos por um bom adulto) lhes permitem, sozinhos, vencer a perseguição. Nesse mesmo contexto, compreende-se que a fada tenha a vara e a princesa dos Três Cisnes, o arco. É colocado em mãos femininas algo que poderia ser fonte de temor para as meninas.

São raros os casos, nos contos de retorno, em que a criança consegue voltar à casa sozinha, sem auxílio de algum adulto, mesmo porque a finalidade do conto é mostrar o despreparo da criança para sair pelo mundo.

A grande exceção é o Pequeno Polegar, criança em tudo excepcional.

Como seu nome indica, Pequeno Polegar é uma anomalia (e talvez por isso o entusiasmo das crianças por ele), o tamanho compensado pela inteligência fora do comum. As botas de sete léguas, que com astúcia consegue, além de serem capacidade mágica para vencer o espaço e o tempo (a pouca idade), são também meio de assegurar à criança que seus órgãos sexuais pequenos não exigem renúncia dos desejos, mas imaginação para satisfazê-los. É interessante observar que, se nos Três Cisnes a menina empunha o arco, aqui o menino entra num enorme e protetor "recipiente': as botas. E se sai muito bem.

O Pequeno Polegar é um dos contos onde melhor aparecem tanto o medo que a criança tem da rejeição (ser morta pelos pais) quanto a necessidade de reparação, sito é, de recompor a bondade dos pais depois da fantasia de sua imensa maldade. Por isso mesmo as proezas maiores são feitas.

Polegar substitui para si próprio e para os irmãozinhos o pai e a mãe por pais ideais: as botas acolhedoras e salvadoras do menino que não abandona os irmãos, os protege contra os perigos da floresta e contra o gigante, os traz de volta à casa com fortuna, garantindo a sobrevivência da família. Não há príncipes nem princesas, tudo depende da inteligência e imaginação da criança pobre e minúscula.

Há nos contos contínua intervenção de bons adultos, mas que não intervêm de modo casual ou arbitrário e sim de acordo com várias regras, entre as quais se destaca a escolha dos mais fracos (o caçula, o órfão, a vítima) e dos que têm senso de justiça, além da coragem. O uso dos talismãs também está submetido as regras, os transgressores sendo punidos (perda da potência do objeto mágico, retorno do objeto contra o usuário) ou protelada a chegada à meta (a seqüência de provas recomeçando ou tornando-se mais árdua).

Heróis e heroínas precisam demonstrar que são dignos do talismã (seja por suas qualidades anteriores à recepção do objeto, seja pelo uso que dele faz, seja pela obediência às regras de seu emprego).

Em resumo: as condutas estão reguladas por normas e valores, a finalidade do conto sendo persuadir a criança de que tais normas são boas e verdadeiras e que o sofrimento decorre apenas de sua desobediência. É o compromisso do conto, situado entre o lúdico e a repressão.

Na maioria dos contos, o talismã é dom de um adulto para uma criança, mesmo que esta não o saiba. Há, porém, uma formidável exceção: João e o Pé de Feijão.

Obtido numa sabida transação (que os adultos não entendem e castigam) o grãozinho de feijão, bom sêmen, plantado em boa terra, cresce durante uma única noite. Gigantesco caule, sobe, sobe, eleva-se até `s nuvens, rijo e duro, o menino podendo nele trepar. Como era inevitável, João penetra no castelo do gigante malvado (figura masculina ameaçadora) que possui um segredo precioso, uma galinha que bota ovos de ouro (imagem feminina da fertilidade, guardada em segredo, fonte de riqueza: os que nascem). Dela se apodera João, fugindo pelo caule, perseguido pelo gigante e, para salvar-se, o menino corta o belo pé de feijão.

O conto procura lidar com um elemento repressivo complicado. Obtida a galinha chocadeira de riquezas por um furto (justo, pois o gigante é mau e a família, pobre), esse ato tem clara significação incestuosa e pode ser um risco para a vida da família e do menino, pois o gigante se põe a descer pela árvore, a mesma por onde o menino trepara. É preciso cortar o pé de feijão depois que o essencial foi conseguido, isto é, a fertilidade. O sexo cresce livremente - é como um elemento da natureza, um vegetal -, mas essa liberdade deve encontrar um limite e ser freada, cortada. O menino que subiu é o gigante mau que desce. E vem com fúria assassina.

Os contos de fadas, tais como os conhecemos, são resultado de muitas reelaborações na sociedade européia, fixados nos séculos XVIII e XIX, carregando as concepções desses séculos sobre a sexualidade (e sobre outras coisas também).

Ora, é interessante observar que, no século XIV, ao lado desses contos, surge, na Inglaterra, um outro tipo de estória, em certos aspecto semelhante ao maravilhoso dos contos, mas com uma diferença fundamental: o mundo adulto não é apresentado com divisões e ambigüidades, bom e mau, difícil e desejável, mas como mau e indesejável.

Estamos pensando em Peter Pan e em Alice - o menino que recusou crescer, ficando na Terra do Nunca, e a menina cujo autor não desejou que ela crescesse, fazendo-a conhecer a luta mortal e absurda com a Rainha do Baralho num tabuleiro de xadrez.

Muitos comentadores, de formação psicanalítica, afirmam que o medo de Peter Pan o faz preferir a imaturidade sexual, o homossexualismo e a masturbação (o pó de pirlimpimpim e o vôo), e que as "perversões" de Lewis Carrol (o autor de Alice) o fazia sentir atração sexual pelas meninas, não desejando que ficassem adultas.

Não pretendemos refutar nem concordar com esse comentadores. Gostaríamos apenas de lembrar que essas estórias foram imaginadas num período conhecido como o da "moral vitoriana", quando a Inglaterra, passando pela Segunda revolução industrial, mantinha o controle capitalista sobre o mundo.

A sociedade desse período é narrada e descrita por inúmeros autores como uma das sociedades mais repressivas da sexualidade. Assim sendo, podíamos considerar a recusa do mundo adulto por Peter Pan e por Alice, em vez de "anormal", talvez muito saudável e lúcida. A Terra do Nunca, apesar do Capitão Ganho, é perfeita, mas o País das Maravilhas é feito de ameaças e de frustrações.

Num romance da escritora inglesa Virgínia Woolf, Orlando (estória de um homem-mulher que vive em dois períodos diferentes da história da Inglaterra), a romancista descreve o momento em que, adormecendo como rapaz no século XVII, a personagem desperta como mulher, em pleno século XIX: vê por toda parte casais com trajes cinza e negro, o céu é tenebroso e opressivo e a moça despertada sente uma dor inexplicável no dedo anular esquerdo (isto é, onde se coloca a aliança de casamento).

* * *

Muitos adultos ficam chocados com a violência dos contos de fadas e se surpreendem com o fato de que não a percebiam quando eram crianças, comprazendo-se nela. É que a maioria das crianças, além de aceitar naturalmente o maravilhoso, espera com inabalável certeza aquilo que o conto promete e sempre cumpre: "e foram felizes para sempre". A gente se engana, portanto, quando tenta "açucarar" os contos ou omitir as passagens "violentas".

Muitos se surpreendem com o fato de as crianças não só desejarem ouvir inúmeras vezes os mesmos contos (numa repetição que deixa os adultos extenuados), mas também não admitirem qualquer mudança no enredo, por menor que seja (cobram do adulto que "encurta" a estória, omite ou esquece algum detalhe, altera alguma ação). Essa relação quase maníaca e obsessiva da criança com a narrativa é essencial.

A montagem do enredo, a configuração das personagens, os detalhes constituem um mundo cuja estabilidade repousa no fato de poder ser repetido sem alteração, contrariamente ao cotidiano da criança que, por mais rotineiro, é feito de mudanças. Além disso, os contos, operando com metamorfoses, desaparecimentos e reaparecimentos, morte incompleta dos bons e morte definitiva dos maus, funcionam em consonância com as fantasias da criança, particularmente o modo como estrutura o desaparecimento e o reaparecimento das pessoas mais próximas, que ama e de quem depende. Inúmeras crianças inventam jogos de esconder e achar objetos, pois sabem onde estão.

A vantagem do conto sobre a realidade, neste aspecto, consiste no fato de que enquanto, nesta última, a criança jamais terá certeza do retorno dos desaparecidos ou do sumiço definitivo daqueles que teme ou odeia, no conto tudo isto lhe é assegurado, a presença e a ausência ficando apenas na dependência dela própria e, para tanto, exige a narração e a repetição.

Qual de nós não experimentou as emoções de brincar de "pique" ou "pegador"? Encontrar é vencer uma prova diante do desaparecimento. Mas, aspecto relevante, o medo de ser encontrado também é importante porque nos torna visíveis no que desejaríamos ocultar. E, por isso, não ser encontrado também define o vencedor. Não é sugestivo que as crianças menores adorem esse jogo, só que, esconder-se para elas, é fechar os olhos? Acreditam que o que não estão vendo as esconde. Maravilhosa fantasia. Maravilhosa onipotência (como Adão, entre as árvores, imaginando que Deus não o vê porque não é visto por ele).

Freqüentemente os adultos temem o prazer manifestado pela criança diante da "violência" da narrativas. Em geral, o adulto teme, inconscientemente, ser identificado com os "maus", sem perceber que essa identificação é sempre contrabalançada pela identificação com os "bons" e, sobretudo, que ela é saudável para ele e para a criança que pode, pela fantasia, fazer discriminações que lhe seriam difíceis ou quase impossíveis sem o material imaginário.

Não é raro vermos crianças que se sentindo ou se imaginando pouco amadas e temerosas do ódio que experimentam por alguns adultos tenderem a duas atitudes muito compreensíveis. Algumas "torcem" pelas bruxas, pelos ogros e dragões, identificando-se com eles e dando vazão á agressividade que, doutro modo, poderia ser punida se manifestada. Outras, se enchem de pavor, pois os "bons" lhes parecem muito longínquos e inalcançáveis, enquanto os "maus" lhes parecem muito próximos e poderosos. Em certo sentido, pode-se dizer que não o prazer e sim o pavor sentido por algumas crianças é que poderia ser considerado como uma espécie de aviso ou de alerta de uma sexualidade com sofrimentos e dificuldades.

O prazer pelos contos não vai sem discriminação. A criança discrimina os valores ali lançados e os organiza para si própria. Em contrapartida, como observou Bettelheim, a maioria das crianças não aprecia fábulas. Qual a criança que não sente ofendido o seu senso de justiça na fábula de A Cigarra e a Formiga? Feitas por adultos para adultos, a fábula desagrada a criança porque esta não é moralista. A ética infantil não passa pelos códigos estreitos dos apólogos nem pelo cultivo da frustração, próprio das fábulas - a raposa sem as uvas, o corvo sem o queijo, o cão sem a carne. Se a criança tolera a exigência de moderação dos impulsos, não tolera vê-los permanentemente frustrados. À patologia repressiva da fábula, ela opõe uma outra economia do prazer.

Como Emília, sempre sem-cerimônia, que fabula a fábula, conta outro conto e muda a moral da estória, para escândalo de Dona Benta.

* * *

Visitando Pele-de-Burro - Ao dar à luz uma menina, a rainha morre deixando viúvo e triste o rei que, desde então, apenas cuida da princesa.

Chegando esta aos quinze anos, sua semelhança com a mãe é tão grande que o pai por ela se apaixona, desejando casar-se com ela. Aterrorizada, a menina procura refúgio junto à aia que a criara. Dando tratos à bola, finalmente a aia julga ter encontrado um estratagema para impedir o casamento. Instrui a menina para que faça ao pai um pedido impossível de ser satisfeito, mas condição para aceitá-lo como marido. Deve pedir-lhe um vestido feito de sol.

Ouvido o pedido, o rei convoca todos os tecelões e tecelãs do reino e ordena que o vestido seja feito. Em três dias, está pronto. A aia repete o conselho, mas agora o vestido deve ser de lua. Feito. Novo pedido, mas de um vestido de mar. Também feito. Furioso com a recusa o rei declara que se casará com a princesa, de toda maneira, caso contrário mandará matá-la. Apiedada, a aia obtém uma pele de burro, nela envolve a menina e a leva para fora do reino, deixando-a entregue à própria sorte.

Assim disfarçada, Pele-de-Burro chega ao reino vizinho onde consegue trabalho como cozinheira do palácio e, por causa de seus aspecto, dão-lhe como morada o chiqueiro. Todas as noites, antes de dormir, Pele-de-Burrro usa seus vestidos e chora seu triste destino.

O filho do rei chega à idade do casamento. O pai convida todas as damas solteiras do reino e dos reinos vizinhos para três bailes, quando o príncipe deverá escolher a esposa. Usando seus vestidos de sol, lua e mar, Pele-de-Burro comparece aos bailes e, desde a primeira noite, é a preferida do príncipe que somente com ela dança.

Ela não revela o nome, onde vive , quem é.

Ao fim do terceiro baile, retorna ao chiqueiro e à cozinha. O príncipe adoece e médicos vindos de toda parte não conseguem curá-lo porque desconhecem seu mal.

Pele-de-Burro faz um bolo colocando seu anel de princesa na massa. Leva ao príncipe que, na primeira dentada, morde o anel, retira-o da boca e o reconhece. Indaga quem o colocou ali. Pele-de-Burro é trazida e diante de todos retira a pele, aparecendo no vestido de sol. Curado imediatamente, o príncipe se levanta, pede-a em casamento, é aceito e logo se iniciam os festejos. E os dois foram felizes para sempre.

Neste conto, a mãe morta não é substituída pela madrasta perversa, mas pela boa aia que criou, aconselhou e protegeu a menina contra o desejo incestuoso do pai. Este, diferentemente de outros contos, não é um pobre velho infeliz, mas um fogoso senhor. A não ser por essas diferenças, no restante o conto parece seguir o padrão dos demais: os quinze anos da princesa e os riscos daí advindos, a fuga, o esconderijo na pele de burro, na cozinha e no chiqueiro, os bailes e o casamento com o príncipe, depois de salvá-lo. No entanto, a trama é bem complicada.

A bondade da aia é ambígua e suspeita. Inicialmente procura esconder a menina, conservando-a no quarto, longe, portanto, do desejo paterno. Depois, sugere os vestidos que, além de serem feitos com elementos naturais (a Natureza não proíbe o incesto) e não poderem proteger a menina, ainda a transformam em sedutora, exacerbando o desejo paterno, culminando na ameaça de morte (ameaça que alguns estudiosos chamam de "julgamento do Rei Lear", para lembra o rei da tragédia de Shakespeare que repudia a filha Cordélia porque não julga suficiente seu amor filial). Finalmente, é a aia quem coloca a menina no interior da pele de burro repelente e a conduz para longe da casa (numa expulsão benigna, mas expulsão de todo modo).

Aparentemente, as personagens se distribuem duas a duas: rei-princesa, princesa-aia. Na realidade, a relação é ternária, pois entre o pai e a filha se coloca a aia-mãe. Morta no parto, reaparece como ama-de-criação.

A figura da aia comanda toda a primeira parte do conto, numa atitude vingadora contra o rei e a filha. Nessa primeira parte, a menina está sob a ameaça de dois amores: o do pai e o da aia, mas se a ameaça do primeiro é percebida por ela, a da segunda fica imperceptível sob o disfarce da proteção. A personagem complexa, portanto, é a da aia e não a do rei. Este, tudo mostra; aquela, tudo oculta. Relegada ás partes servis do castelo, nele reina.

A situação, porém, é mais complexa. A aia-mãe, falsa protetora, também está a serviço de uma outra fantasia. Aparentemente, o desejo incestuoso parte do pai. Na verdade, parte da filha, a aia estando a serviço do ocultamente desse desejo, colocada, como nas peças teatrais, na qualidade de comparsa e cúmplice.

O amor da menina pelo pai não pode aparecer porque sua aparição exigiria o ódio pela mãe. Ora, visto que o que a faz amada pelo pai é sua total semelhança com a mãe, ela não só já conseguiu ocupar o lugar materno, mas ainda colocar a mãe no lugar subalterno de uma serviçal. Lugar, que a seguir, ela própria ocupará, ao tornar-se cozinheira, desalojando a mãe de todos os lugares. Há uma luta surda e inteiramente dissimulada na relação princesa-aia.

O disfarce da pele de burro é significativo. Não significa apenas a animalização da menina por obra do pai e da mãe. Significa mais alguma coisa. Em várias religiões existem rituais propiciatórios dedicados á purificação e à fertilidade. Na Grécia, por exemplo, existe o rito dionisíaco de morte do bode para expiação das culpas, renascimento e fertilização da terra.

Nesse ritual, os participantes se cobrem com peles de bode, dançam, têm relações sexuais e bebem vinho, encenando a história do deus Dioniso, morto por amor de sua mãe e ressuscitado pelo sacrifício por ela feito. Coberta na pele de burro, a menina realiza um rito semelhante, ao qual se acrescenta a morada no chiqueiro.

Diferentemente de Branca de Neve e de Bela Adormecida, sua espera ou passagem não se realiza pelo sono, mas à semelhança de Borralheira, vive na sujeira e na impureza e, à semelhança de Bela, vive com animais.

Essa impureza tem vários sentidos. É, por um lado, a menstruação, encarada na maioria das culturas como impureza que isola as mulheres, fazendo-as intocáveis. São os desejos proibidos, a masturbação (vestir os vestidos antes de dormir), a fase anal, por outro lado. Mas não só isso.

Analisando o significado das cinzas e do borralho, na borralheira, Bruno Bettlheim lembra que na antiga Roma as Vestais (meninas da mais alta estirpe romana que deveriam permanecer virgens até os trinta anos), estavam encarregadas de uma das mais altas, nobres e importantes funções: a conservação do fogo sagrado, protetor de Roma. Ora, Pele-de-Burrro vive no chiqueiro, mas é cozinheira no palácio, vivendo ao pé do fogão. Esse lugar não só a transforma de recebedor de alimento (criança) em doadora dele (mãe), mas também lhe dá uma nova figura: trabalha com o trigo (o bolo) e este é símbolo de virgindade (a Virgem, do Zodíaco, carrega um ramo de trigo) e de fertilidade. Articulam-se, assim, vida, morte, pele de animal para purificação, virgindade e fertilidade.

Quanto aos bailes, já vimos seu sentido principal nos contos. Vestida de natureza, a princesa dança e seduz.

Quanto ao bolo, também lá mencionamos seu sentido.

Resta o anel. Além de símbolo evidente da aliança matrimonial, o anel assume sentido para a sexualidade da personagem masculina. Antes de enfiá-lo no dedo, o príncipe o coloca na boca. Sua doença é a infantilidade. Sua cura, transferir o anel da boca para o dedo, e reconhecê-lo como um objeto doado por Pele-de-Burro, não podendo devorá-lo

Os vestidos também são significativos, além do sentido geral de elementos da natureza. Em inúmeras mitologias, esses elementos são deuses e costumam formar uma trilogia ou trindade indissolúvel: sol-dia-luz-fogo-sexo; lua-noite-treva-mistério-sexo; mar-água-abismo-sexo. Força vital, força mágica e força concebedora.

O número três, cujo significado preciso desconhecemos neste conto, é considerado em muitas culturas o número perfeito ou número da harmonia e da síntese dos contrários.

Possui poderes mágicos (repetir três vezes uma expressão ou um gesto). Na filosofia pitagórica, foram a figura perfeita e sagrada do triângulo constituído pelos dez primeiros números.

Na Cabala, três são as luzes mais altas do infinito, formando o "teto dos tetos" e três são as letras do nome de Deus quando esta passa de "nada" a "Eu". Três são as Pessoas da Santíssima Trindade. Três vezes Pedro negou Cristo. Três são as essências ou hierarquias celestes (na primeira: tronos, serafins e querubins; na segunda: poderes, senhorias e potências; na terceira: anjos, arcanjos e potestades). Três são as partes da alma. Três as virtudes cardeais (fé, esperança e caridade).

Três vestidos, três bailes. Em Branca de Neve, três vezes a madrasta vai à casa dos anões (na primeira, com o cinto de fitas, na segunda, com o pente, na terceira, com a maçã). Três são as filhas em A Bela e a Fera e na Gata Borralheira, como três são as irmãs no três Cisnes e nas Três Plumas.

Três vezes, na canção, "Terezinha foi ao chão" e "acudiram três cavalheiros/Todos três chapéu na mão/o primeiro foi seu pai/o segundo, seu irmão/o terceiro foi aquele a quem ela deu a mão".

* * *

A referência que fizemos aos contos de fadas foi muito sumária, deixando de lado aspectos importantes como, por exemplo, outros significados das próprias fadas e demais figuras maravilhosas, ou outros sentidos da relação entre a bondade e a maldade, para a criança, e a divisão dos bons e maus nos contos.

Também não analisamos os vários significados dos animais e das plantas (oriundos de mitologias e simbologias de várias épocas), dos elementos naturais como água, fogo, ar e terra (sobre os quais o filósofo Gaston Bachelard escreveu, considerando-os arquétipos do inconsciente universal), das poções e filtros preparados por fadas e bruxas (sobre os quais os historiadores muito têm pesquisado), das palavras mágicas (que aprecem em outros contextos, como no filme de Fellini, Oito e Meio, onde, ao pronunciar as palavras "Asa Nisa Masa", o menino traz e expulsa fantasmas e realiza desejos).

Não analisamos os objetos mágicos, embora tenhamos feito breve referências às espadas, aos bolos, às botas, aos sapatinhos (mas nada dissemos sobre o espelho, em Branca de Neve e A Bela e a Fera, o espelho aparecendo no pensamento ocidental em idéias como "os olhos são espelho da alma", ou como feitiço perigoso, à maneira de Narciso que se apaixonou por sua própria imagem, propiciando o surgimento do conceito de narcisismo ou de fase do espelho, na psicanálise).

Apesar dessas lacunas, gostaríamos de sugerir aqui que os contos trabalham em dois níveis: um imaginário (a estória propriamente dita) e um simbólico (a construção implícita do enredo, o lugar e a hora de cada peripécia, os objetos, as cores, os números, as palavras).

Gostaríamos também de lembrar que os símbolos não estão no lugar de outra coisa não são substitutos, mas são a própria coisa presentificada por meio de outras. O símbolo realiza ou traz a coisa por intermédio de outra.

Também não nos detivemos nas posições sociais e políticas das personagens - reis, rainhas, príncipes, princesas, servos, camponeses. Nem no fato de alguns serem estrangeiros ou deformados (não é curioso, por exemplo, que haja uma Moura que é torta?). Nem nos demoramos na estrutura da família encontrada nos contos. Numa palavra, as dimensões históricas, ideológicas e políticas foram silenciadas.

Sobretudo não fizemos qualquer menção á alma dos contos, isto é, que são obras literárias. Nada dissemos de sua construção artística, de suas origens, transformações e reelaborações no decorrer do tempo (situações medievais tratadas com recursos do romantismo, por exemplo), do modo como participam de várias fontes diferentes de pensamento (como a Cabala, presente na escolha dos números, privilegiando o 2, o 3, o 7 e o 10; na escolha das horas, particularmente a meia-noite; na escolha de vegetais, cores, metáforas), do significado da ordem de aparição e desaparição de personagens ou da seqüência dos eventos (uma análise de tipo estrutural poderia mostrar, por exemplo, porque a seqüência é sempre a mesma).

Essa ausência da consideração artística é grave sobretudo quando consideramos dois fatos culturais: a pasteurização dos contos de fadas por Disney e o surgimento de um literatura infantil "realista".

Na disneylândia (exceção feita para duas obras-primas de Disney: Fantasia e Branca de Neve e os Sete Anões), opera-se uma curiosa inversão. Em lugar de encontrarmos, como nos contos narrados, a criança lidando consigo mesma ao lidar com a divisão dos bons e dos maus, encontramos adultos fabricando a "boa criança" com quem possam conviver sem medo. O desenho só é lúdico se for "bondoso" (a contraprova sendo o horror de um filme como Pinóquio).

Para melhor avaliarmos essa perda, podemos relembrar A Bela e a Fera, no filme de Jean Cocteau. Além da ambigüidade na relação entre pai e filha e na rivalidade das irmãs pelo amor paterno, Cocteau dá especial atenção à figura de Fera: na cena do desencantamento descobrimos que um mesmo ator faz dois papéis; num deles, é um adolescente enamorado de Bela que, voltada para o pai, sequer o percebe; noutro, é a Fera.

O desencantamento é a reunificação das figuras que sempre foram uma só, estando duplicadas apenas por causa do medo de Bela. Medo magistralmente tratado na cena do espelho, onde se revezam as imagens de Bela, do pai, da Fera e do apaixonado. Na relação sexual, com que termina o filme, Bela e o Príncipe, enlaçados, as roupas agitadas pelo vento, suavemente elevam-se nos ares, sumindo por entre as nuvens.

Por sua vez, a chamada literatura infantil realista, além de privar a criança do acesso ao imaginário maravilhoso, fundamental para sua constituição, procura criar a "criança útil", que compreende o mundo "tal como é" (com o detalhe de que é "tal como é" para o adulto que escreveu a estória), aceita a divisão social dos papéis como divisão sexual correta, faz do trabalho e do sucesso valores centrais. A fantasia é considerada perigosa ou inútil.

Essa literatura, pretensamente realista, substitui a criança sabida, inventiva, crédula e astuta, amedrontada e valente, pela criança tonta e "bem-intencionada".

Talvez fosse bom relembrarmos a obra de Monteiro Lobato que não reprimiu "perversões" (Narizinho e o Príncipe Escamado, Emília e Rabicó), escrevendo na certeza de que a criança é inteligente, sabida e crítica.

Afinal, não realizou a mais extraordinária proeza quando, trazendo ao Sítio do Pica-Pau Amarelo as personagens dos contos de fadas, deu-lhes a oportunidade de convocar os autores dos contos e julgá-los, Emília propondo recontar doutro jeito as estórias? Pena que a televisão também tenha pasteurizado Lobato.

Enfim, não mencionamos o maravilhoso elaborado no folclore brasileiro. Por que será que o canto da Uiara seduz e mata os homens? O Saci-Pererê é preto, perneta, usa barrete vermelho e pita um pito de barro? O Curupira tem os pés virados para trás? No conto do Sete Estrelo os filhos abandonados viram estrelas, brilhando no céu? No conto A Figueira, a madrasta enterra as enteadas, cujos cabelos se transformam em árvore e cujo canto triste permite a um homem descobri-las e salvá-las? Mas não custará ao jovem leitor partir em busca desse imaginário, se quiser.

Nós lhe recomendamos vivamente que, se o fizer, aceite a companhia do Macunaíma de Mário de Andrade.

* * *

Quando iniciamos este tópico, dissemos que não concordávamos inteiramente com as interpretações de Bruno Bettelheim e demos alguns motivos de nossa discordância. Em particular, dizíamos, a excessiva centralização das análises em torno das relações familiares.

Para que nossa afirmação não pareça descabida, sobretudo após a pequena visita que fizemos a Pele-de-Burro, gostaríamos de transcrever aqui um outro conto de fada que se volta, de maneira extraordinariamente bela, para o fundo mais fundo, lá onde mergulha a busca do maravilhoso.

Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em mote a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado.
Ele dela ignorado.
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino.
Ela dormindo encantada
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E, vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora.

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


Este poema encontra-se no Cancioneiro do poeta Fernando Pessoa e se chama Eros e Psique.

Num livro dedicado ao estudo da obra de Fernando Pessoa, intitulado Fernando Pessoa - Aquém do Eu, Além do Outro, a escritora Leyla Perrone Moisés interpreta a figura desse poeta cuja obra se desdobra em quatro, cada qual com um nome de poeta diferente, cada qual por ele atribuída a uma pessoa diferente. Na busca-recusa da identidade (aquém do eu, além do outro), a escritora nos lembra que, em latim, persona é a máscara usada pelos atores no teatro, e que, em francês, personne quer dizer: ninguém.

* * *

Eis a versão repressiva de Eros e Psique: dois seres, enclausurados num cubículo e em suas vestes, sem corpo e sem rosto, enlaçados pelas convenções. Encontro sem contato (as bocas não se beijam, beijam trapos) e sem intimidade, pois, no cubículo fechado e sob os panos que cobrem seus corpos e rostos, se descobre a presença da sociedade inteira, vigiando e controlando o pobre par.

Será Freud o primeiro a captar que Eros e Psique não são dois entes separados perpetuamente buscando um ao outro, mas que são um só e mesmo ser: Eros (o desejo) habita Psique (a alma). Como no poema de Fernando Pessoa, em que o príncipe destemido busca a princesa encantada para descobrir que ele era ela. Desejo de indivisão e de fusão perpétua (impossível), o laço que enlaça em terno e fundo abraço, é a sexualidade humana, perpetuamente reprimida.

Fonte:
Do livro: Repressão sexual: essa nossa (des)conhecida, Marilena Chauí, Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54)

Identidade e Identificação



A idéia básica da qual vamos partir é a seguinte: a identidade não é um elemento que cada um de nós possui ao nascer; ela é algo adquirida aos poucos, ao longo de nossa infância, de nossa educação, etc.

A identidade situa-se no ponto de cruzamento entre algo que vem de nós (o equipamento psíquico com o qual nascemos) e algo que nos vem de fora, isto é, da realidade externa. E, como dizia Freud em Totem e Tabu, na realidade externa o que existe é a sociedade humana, com as suas instituições e as suas normas.

Tentemos definir, brevemente, o que quer dizer a palavra identidade.


O primeiro sentido é o de ser idêntico a: duas folhas de papel são idênticas quando não existe diferença perceptível entre uma e outra. Outro sentido é aquele em que empregamos a expressão "carteira de identidade": neste caso, trata-se de um conjunto de sinais que permitem a outros dizerem quem nós somos, isto é, nos identificar, nos distinguir em meio a um conjunto. No caso da carteira de identidade, tais sinais são o número do R. G., a filiação, etc. Já percebemos, ao justapor estas duas acepções da palavra, que a identidade remete aos temas da diferença e da alteridade, isto é, remete aos seus opostos. Identificar significa "separar", "designar", mas também significa "tornar igual a": é neste campo semântico que se insere o sentido propriamente psicológico do termo.

Todos nós temos um sentimento de identidade, isto é, a sensação subjetiva de que algo subjaz aos diversos momentos de nossa existência e os torna partes da mesma vida, a de cada um de nós. Este sentimento de identidade está associado a fenômenos como o da continuidade (hoje e ontem, sou o mesmo, embora esteja em outro lugar e esteja vivendo coisas diferentes), e como o da sensação de ter limites (por exemplo, limites do meus corpo: sei intuitivamente onde começo e onde termino, e me sinto inteiro dentro dos limites da minha pele). Estes fenômenos podem parecer naturais, mas não são: existem pessoas cuja perturbação psíquica concerne exatamente a estas sensações de permanência, de continuidade, de limites claros entre si e outros; tais pessoas podem apresentar sintomas muito variados, que indicam estar pouco estruturado o nível de identidade, neste sentido que estou assinalando.

São patologias deste gênero que colocaram Freud e seus sucessores na pista de um problema que envolve este que estamos estudando, e que eu formularia assim: como se constitui a identidade de um ser humano? Que ela não é um dado natural é evidente pelo fato de que podemos perdê-la, ou de que ela poder ficar seriamente comprometida em certos quadros clínicos. Então, de onde vem?

A psicanálise responde: do processo a que chamamos identificação. E este processo de identificação resulta na constituição, dentro de cada um de nós, de um eu, isto é, de uma parte nossa que vai nos parecer a única, porque é apenas dela que temos consciência.

Quando uma criança nasce, ela ainda não tem um "eu", por mais estranho que isto possa parecer. Um bebê é um animalzinho que nasce cedo demais para a vida; é preciso cuidar dele durante vários anos a é que ganhe uma certa autonomia, coisa que os filhotes da maioria dos animais obtêm em questão de horas, dias ou semanas. Este fato biológico tem conseqüências psíquicas muito importantes. Através de filmes como Kaspar Hauser e de histórias reais de crianças que foram abandonadas logo ao nascer entre animais selvagens, e que por algum milagre sobreviveram, nós sabemos o que acontece quando o ser humano se desenvolve fora da sociedade humana: ela não realiza nenhuma das potencialidades que caracterizam nossa espécie, como a postura ereta ou o uso da linguagem e das técnicas de trabalho.

Histórias como a de Tarzan ou a de Mowgli, o Menino-Lobo, são infelizmente mitos; elas humanizam a vida dos macacos e dos lobos, transformando-as em réplicas melhoradas da sociedade humana.

Um psicanalista diria que estas lendas projetam sobre os animais algumas idéias acerca da felicidade do homem em estado selvagem, idéias que deram origem, em outros contextos, às mais variadas utopias (sem qualquer sentido pejorativo no termo utopia). Um personagem como Tarzan representa algo dos nossos ideais, ou pelo menos dos ideais do autor e da sociedade na qual e para a qual ele escreve: o homem, deixado às influências da Natureza, torna-se belo, autônomo, justo (Tarzan está sempre combatendo pelo Bem); ele reúne as melhores qualidades do animal e do ser humano. Mas as coisas não são bem assim: sem tirar a graça das histórias de Tarzan, é preciso reconhecer que o que humaniza o homem, o que o torna homem, é o convívio com outros seres humanos. E isto não apenas no plano mais óbvio, o dos hábitos, crenças e maneiras de ser que diferenciam as civilizações umas das outras – é claro que uma criança educada entre os pigmeus tem boas chances de se converter em pigmeu, socialmente falando, e independentemente de sua estatura. O que a psicanálise mostra é que a própria identidade pessoas nos chega através do convívio com outros seres humanos: nosso Eu, que consideramos tão "nosso", na verdade resulta de um longo e complicado trabalho psíquico.

Suponhamos um momento uma psique desencarnada, fechada sobre si mesmo e fora de um corpo. O que esta psique seria capaz de produzir? Claramente, nada que tivesse relação com o mundo fora dela: vamos chamar estas produções, quaisquer que possam ser elas, de pictogramas, utilizando um termo criado pela psicanalista Piora Aulagnier. Mas a psique não existe assim. Ela existe dentro de um corpo, e, por mais desagradável que seja esta experiência, ela precisa se abrir para o mundo e ser capaz de representar este mundo; se não, ela e o corpo que a abriga morrerão rapidamente. Originariamente, a psique não distingue entre um "dentro" e um "fora" dela; ou melhor, coloca fora de si tudo o que seja desagradável (ainda que a fonte deste estímulo desagradável seja o próprio corpo), e coloca dentro de si tudo que é agradável (mesmo que a fonte deste estímulo agradável seja, por exemplo, o seio do qual o bebê mama). Este é um espaço de fantasia, no qual vigora o princípio que Freud chamou de onipotência do pensamento. Todos nós sabemos que, em nossas fantasias, tudo é possível: às vezes, em nossos devaneios, somos amigos do rei, ou o próprio rei, somos imortais, belíssimos, etc. Basta querer e as coisas acontecem; uma imagem disto é a idéia da boa fada, com sua varinha de condão, que torna instantaneamente reais nossos desejos mais profundos.

Mas nem a fantasia nem o que caracterizei como pictograma são funções do eu. Este é uma parte do espaço psíquico que está em relação com a realidade exterior, cujos objetos de prazer se encontram nesta realidade, e não podem ser criados, como as fantasias pela atividade espontânea da psique.


Os primeiros objetos deste gênero são o corpo próprio e o Eu da mãe.


E criação de um Eu no bebê depende decisivamente da maneira como a mãe lida com ele, o que por sua vez depende decisivamente da maneira como ela lida com sua própria psique e com seu próprio Eu. A função do Eu é dar sentido ao que ocorre à psique, ao que vai lhe acontecendo por estar inserida num corpo e num sistema de relações com os outros seres humanos. Por isto, é preciso que o eu seja capaz de uma atividade psíquica que não se confunde com a fantasia, e que se chama o pensamento. E, para que o Eu do bebê tenha pensamentos para pensar, é preciso que a mãe os ofereça a ele.


Aqui convém introduzir uma noção psicanalítica muito importante: a de investimento. Investir algo significa, em psicanálise, ligar uma certa fração de energia psíquica a um objeto, objeto que pode ser uma idéia, uma pessoa, uma parte do corpo, uma coisa do mundo externo, etc. A psicanálise utiliza esta idéia um pouco esquisita segundo a qual, para que o Eu se constituia, é necessário que ele invista a si próprio, isto é, que a idéia de "eu" tenha sentido para o bebê. E como isto acontece? De uma maneira muito simples: é a mãe, como porta-voz da sociedade em que o bebê nasce, que por assim dizer "introduz" na psique do bebê um certo tipo de pensamentos, pensamentos cuja função é identificante, isto é, que dizem ao bebê quem ele é. "Você é meu bebê", "Você é lindo", "Você é meu filho", são exemplos simples deste tipo de pensamentos, que são pensamentos da mãe acerca de seu bebê. Eles exprimem os desejos da mãe quanto a esta criança, como podemos ver na seguinte anedota: Uma mãe judia está passeando na praça Buenos Aires com seus dois filhos, no carrinho de bebê. Uma pessoa se aproxima e pergunta: "são seus filhos?" E ela: "Claro! Este é o médico e este é o engenheiro!". Enunciados deste tipo são, na linguagem técnica da psicanálise, enunciados identificatórios.

Uma parte importante destes enunciados concerne ao nome e ao sobrenome que nós temos, e que fazem parte de nossa identidade, mas não foram escolhidos por nós. Eles nos localizam dentro da sociedade, como membros desta ou daquela família, e assim designam para cada um de nós alguém como nossa mãe, alguém como nosso pai, outros seres humanos como nossos irmãos ou primos. Isto serve também para definir aqueles ou aquelas com quem não posso manter relações sexuais: é o que se chama de lei da proibição do incesto. Entre os animais, não existe esta regra: um gatinho, quando cresce, pode fecundar uma gata que nós sabemos que é a mãe dele; mas nenhum dos dois sabe disso, porque no mundo dos gatos não existem pais nem mães, só existem machos e fêmeas. Estou dando este exemplo para mostrar que um gato não tem o que chamamos de identidade. Ele pode até reconhecer que seu nome é este ou aquele – os cachorros, por exemplo, percebem perfeitamente quando dizemos seu nome – mas eles não se designam a si mesmos desta maneira. Então, creio que está clara esta idéia: nós nos designamos por nosso nome, e nosso nome nos foi dado por outros, para quem este nome tem um sentido qualquer, no seu próprio desejo.

Aqui cabe uma observação. Costuma-se apresentar a relação entre a sociedade e o indivíduo como sendo basicamente uma relação de repressão. O indivíduo, por viver em sociedade, não pode fazer tudo o que deseja, deve aprender a controlar seus impulsos etc. Mas a sociedade não apenas nos impede de fazer o que desejamos. Através dos procedimentos identificatórios, ela também nos permite, torna possível para nós, o exercício de nossas potencialidades. No cinema, há bons exemplos disso. Num filme de Buñel, se não me engano O Discreto Charme da Burguesia, há uma cena que mostra isto bem: as pessoas comem em segredo, mas defecam em público. Isto é perfeitamente admitido naquela sociedade, enquanto o ato de comer é considerado sujo e indecente. Cenas assim servem para mostrar como são relativos os critérios do permitido e do proibido; os romanos defecavam em latrinas coletivas, como se pode ver nas ruínas das termas; ia-se ali não só para tomar banho ou fazer as necessidades, mas para ficar sabendo das últimas novidades, etc. Mesmo em nosso meio social, os critérios do permitido e do proibido variam de época para época. Há cem anos, era absolutamente indecente para a mulher mostrar as pernas, mas o colo era considerado como feito para ser exposto: de onde saias compridas e decotes extremamente ousados. Há um romance de José de Alencar, A Pata da Gazela, no qual o herói se apaixona pelo sapato da moça, que sugere um lindo pé, não visto e por isto mesmo misterioso, desejável; era considerado extremamente indecente mostrar os pés, mas os ombros e os cabelos podiam ser exibidos sem o menor constrangimento.

Tudo isto nos ajuda a compreender que sempre existe uma regra que partilha entre o permitido e o proibido, embora o que faz parte de cada uma destas categorias possa variar de época para época e de sociedade para sociedade.


A sociedade precisa criar não somente obstáculos á realização dos desejos, mas também canais através dos quais o sujeito possa dispor de um espaço psíquico interno; e uma das partes deste espaço interno é a identidade.


O poder não é apenas uma instância que reprime e proíbe; ele faz surgir, incita, produz comportamentos, como mostram os estudos do filósofo Michel Foucault. Entre estes comportamentos, está a relação do indivíduo consigo próprio, que é função de certas maneiras de sentir, de agir e de pensar que lhe são inculcadas através dos mecanismos identificatórios. Cada sociedade precisa se estruturar de forma tal, que seus membros possam se identificar a certos modelos, adotá-los como seus, representá-los como ideais a serem atingidos, etc. É necessário que haja também uma margem de manobra interna para cada sujeito, um espaço dentro do qual ele possa acomodar estes modelos gerais que a sociedade lhe oferece às suas próprias fantasias e às suas próprias fontes de prazer; é neste espaço que cada um de nós é Pedro ou João, goza de um direito á subjetividade que nos permite ser assim ou assado. Caso contrário, se houvesse apenas o processo de identificação no sentido sociedade - psique, todos os membros de uma dada sociedade seriam psiquicamente iguais, o que obviamente, não é verdade.......


Fonte:
(Do Livro: Psicanálise, judaísmo: ressonâncias. Renato Mezan. Ed. Escuta, 1986, Campinas, SP, pág. 44-49)

domingo, 20 de junho de 2010

Totem e Peru: Pai Castrador, Filho Transgressor



Resumo: Este artigo tem por objetivo abordar a relação entre conto “O peru de natal”, do escritor brasileiro Mário de Andrade, o tabu e o totemismo nas sociedades primitivas.

Palavras-chave: Pai, filho, totem, peru, imagem castradora.

Abstract: This article’s object is the relationship between “O peru de natal”, by the Brazilian writer Mario de Andrade, taboo and totemism in the primitive communities.

Keywords: Father, prohibition, sun, totem, turkey, castrator image.


O conto “O peru de natal”, de Mário de Andrade, relata a história do personagem-narrador Juca, o qual aborda com uma visão crítica a relação autoritária e castradora do pai para com ele e a família. Juca, logo no início do conto, já nos dá indícios de nutrir uma profunda revolta contra a figura dominadora paterna quando o mesmo descreve o pai como “um ser de natureza cinzenta”, “acolchoado no medíocre”, “o puro sangue dos desmancha-prazeres”, dentre outras coisas. Esse descontentamento com relação ao pai se mostra ainda mais expressivo quando, mesmo após a morte deste, sua imagem continua como uma lembrança obstruente, subjugando e limitando a família em desfrutar de certos deleites.

(...) Quando chegamos nas proximidades do natal, eu já estava que não podia mais para afastar aquela memória obstruente do morto, que parecia ter sistematizado para sempre a obrigação de uma lembrança dolorosa em cada gesto mínimo da família. Uma vez que eu sugeri a mamãe a idéia dela ir ver uma fita no cinema, o que resultou foram lágrimas.

Como uma forma de escapar dessa estrutura castradora, que fazia dos prazeres um tabu, o personagem-narrador Juca criou para si um mecanismo de autodefesa, um tipo de comportamento considerado por todos extravagante e inapropriado, o qual ele mesmo se refere no texto como suas “loucuras”.

(...) Essa fora, aliás, e desde muito cedo, minha esplêndida conquista contra o ambiente familiar. (...) eu consegui no reformatório do lar e na vasta parentagem, a fama conciliatória de “louco”.(...), pois foi o que me salvou, essa fama. Fiz tudo o que a vida me apresentou e meu ser exigia para se realizar com integridade. E me deixaram fazer tudo, por que eu era doido, coitado. Resultou disto uma existência sem complexos, de que não posso me queixar um nada.

Para se opor à ceia reles que seu pai impunha todos os anos no natal, o personagem-narrador tem a idéia de propor a família que, logo no primeiro natal após a morte do patriarca, se faça um peru só pra eles, e a idéia, ao invés de reprovada, é aceita com mal-disfarçado contentamento por parte de todos.

E é durante a ceia que o embate entre o peru (transgressão) e a imagem do pai (castração) se realiza.

Totemismo, segundo a antropologia, consiste em um conjunto de praticas sociais, crenças religiosas e mitos relacionados ao totem. Este totem pode ser um animal, vegetal ou qualquer entidade ou objeto em relação ao qual um grupo ou subgrupo social (p. ex., uma tribo ou um clã) se coloca numa relação simbólica especial, que envolve crenças e práticas específicas, variáveis conforme a sociedade ou cultura considerada. A partir disto, como no exemplo que veremos mais adiante, cria-se o chamado tabu, que consiste em uma proibição, a qual pode ser alimentar, sexual, religiosa ou etc.

Em “O peru de natal”, de Mario de Andrade, o peru é, a princípio, uma espécie de tabu para a família do personagem-narrador Juca. A ave é preparada apenas em ocasiões festivas e somente com o objetivo de forjar para os demais parentes uma fartura inexistente, visto que, o patriarca, como o provedor da família, impunha a eles uma série de restrições, inclusive alimentares. Utilizando as palavras do próprio texto, peru para eles era “só no enterro dos ossos, peru resto de festa”. Já em um segundo momento no texto, o peru passa a ser uma espécie de totem que, após a morte do patriarca, simbolizará uma libertação para a família, da imagem castradora do pai.

Tornando a relação entre o pai e a família do narrador-personagem Juca, embora este último sentisse uma profunda revolta contra a dominação paterna à estrutura familiar, as mulheres da família, após a morte do patriarca, ainda se sentiam muito presas a uma imagem idealizada do pai.

(...) os próprios laços que unem, seja os seres de um mesmo grupo, seja os diferentes grupos entre si, são concebidos como laços sociais. (...) estes laços são representados sob a forma de laços familiares, ou com relação de subordinação econômica ou política; pode se dizer, pois, que os mesmos sentimentos que estão na base da organização doméstica, social, etc., presidiram também a repartição lógica das coisas. (...) O que faz com que umas se subordinem às outras é, em todos os pontos, análogo ao que faz o objeto possuído aparecer como inferior a seu proprietário, o servo ao seu senhor. Foram, pois, estados coletivos que deram nascimentos a estes grupos e, ainda mais, estes estados são manifestamente afetivos. Existem afinidades sentimentais entre as coisas como entre os indivíduos, e elas se classificam segundo tais afinidades. (Durkheim, 1998, 199-200).

Alguém tendo lido “O peru de natal”, poderia indagar por que sendo o patriarca um ser tão mesquinho e de natureza tão cinzenta, somente um dos filhos se insurgira contra esta estrutura dominadora a qual os demais se submeteram passivamente. Bem, em primeiro lugar, no conto temos apenas a visão de um personagem, que é também o narrador, portanto jamais saberemos se tudo o que ele diz a respeito do pai é verdadeiro ou apenas fruto da mente rebelde de um jovem que talvez não tenha superado saudavelmente seu complexo de Édipo e deseje, portanto, denegrir a imagem do pai a fim de ocupar, de alguma forma, o lugar do mesmo na família. Mas isto não passa de uma hipótese, obviamente. Em segundo lugar, tratava-se de uma típica estrutura patriarcalista do início do século XX, onde o texto acima conseguiria explicar com clareza essa relação, também de afetividade, existente entre o dominador e o dominado, entre o patriarca e a família. E em terceiro lugar, poderíamos associar a imagem do pai uma instancia psíquica denominada superego, ou seja, o pai é, pois, interiorizado, e sua lembrança idealizada toma, na família, o lugar ideal do Eu, assegurando a unidade coletiva. Como se esse ideal se construísse nas limitações, nas restrições, na negação do prazer. Um exemplo disso é o que ocorre na passagem abaixo:

(...) De modo que, ainda disfarçando as coisas, deixei muito sossegado que mamãe cortasse todo o peito do peru. Um momento, aliás, ela parou, feito fatias um dos lados do peito da ave, não resistindo àquelas leis de economia que sempre a tinham entorpecido numa quase pobreza sem razão.

E, se a figura do pai associamos ao superego, a de Juca (o filho) poderíamos associar ao id, como o ser que desencadeia o desejo do peru, da transgressão, do embate com a imagem castradora paterna. Assim, para completar o ciclo, a família, dividida entre estas duas instâncias id e superego, se identificaria como o ego.

Ao fim do conto, enquanto Juca e a família degustavam o tão esperado peru, eis que surge a imagem do pai para tirar-lhes o gosto pela ave. Juca principia por enaltecer o peru, o que fortalece ainda mais o espectro imaginário, então, o personagem-narrador torna-se enfim hipócrita, não mais renega a ausência do pai, mas a assume de maneira que esta perde a evidência, se tornando uma “inestorvável estrelinha do céu”¹ e todos podem finalmente apreciar a ceia de natal, celebrando o início de uma nova vida.


Concluindo, “O peru de natal” retrata um conflito comum às comunidades primitivas e à composição familiar do início do século XX, conseqüência de uma estrutura patriarcal autoritária, em que a disputa pelo poder sobre o clã ou núcleo familiar leva a uma emulação entre as figuras paterna e filial. A palavra “peru”, no português brasileiro chulo remete ao órgão sexual masculino, considerando a relação totêmica do peru no conto, poderíamos assim dizer que o ato trangressório de coero peru, que era até então um tabu imposto ao núcleo familiar, era, para o personagem-narrador Juca, devorar a “virilidade” do pai. Este, enquanto vivo, permitia apenas que a família externa ao núcleo (a parentagem), apreciasse a ave, visto que esta era uma forma de afirmar também sobre os outros clãs seu poder econômico, sua virilidade era assim expressada através da capacidade de oferecer aos outros o peru². Para o pai, a restrição alimentar era uma forma de exercer o seu domínio, o seu poder sobre o seu pequeno clã (a família). Então, após a morte do patriarca, devorar o objeto totêmico que representava metaforicamente a virilidade do pai, era uma forma de devorar a imagem obstruente do mesmo, de exorcizá-la, é o que o personagem narrador Juca faz. E assim, através de um canibalismo simbólico, ele liberta a família da imagem castradora do morto para que possam redescobrir, em toda sua intensidade, o amor familiar.


¹ Segundo a mitologia astronômica, modelada sobre a organização totêmica, a determinado antepassado um astro é atribuído. Rodrigues ( 1998, p. 187)

² O totem que era proibido para alguns membros do clã e não o era para outros poderia ser degustados por estes, assim como o totem proibido para um determinado clã poderia ser degustado pelos outros clãs durante celebrações. (...) somente em algumas comunidades, o marido se abstinha de comer o totem proibido para sua esposa para não o passar a ela de maneira indireta durante o coito.

Autores: Caterine Araújo, Geysson Lima / UECE

Morte e Vida Severina - Análise parte II - Dialogando com outras obras


Gênese e Influências

Ninguém melhor do que o próprio autor para nos relatar o processo de criação de uma obra. Deixemos, então, que João Cabral de Melo Neto nos explique a gênese de sua peça:

"Meu primeiro poema foi publicado em 1942 no Recife, mas não tinha nada a ver com a cidade. Era de influência surrealista. Tenho 180 poemas escritos sobre Pernambuco - a maioria deles sobre o Recife e seu Rio Capibaribe. E escreveria outros tantos se pudesse. A veia inspiradora do Recife não morre, porque a cidade continua a existir. Persiste a atmosfera de miséria que inspirou, por exemplo, O Cão Sem Plumas, de 1950, ou Morte e Vida Severina, de 1954. Sempre escrevi poemas sobre o Recife longe da cidade. Eu não precisava estar lá para recriar o universo sobre o qual falo em meus poemas. Não acabaram as favelas nem as populações ribeirinhas do Capibaribe, que conheci na minha adolescência andando pelos mangues perto de casa, na Jaqueira. Algumas pessoas chegaram a me perguntar se eu tinha me inspirado em Josué de Castro e sua Geografia da Fome na hora de escrever esses dois poemas. Conheci, admiro e respeito Josué de Castro, que foi meu chefe em Genebra. Mas não me inspirei nele. Fiz poesia e emoção sobre aquela realidade miserável do Recife. Ele fez ciência. Essa é a diferença entre nós.

A história desses dois poemas é bem simples. Eu era cônsul-geral do Brasil em Barcelona quando li numa revista que a média de vida na Índia era de 29 anos. Isso significava um ano a mais que os 28 anos de perspectiva de vida do recifense. Fiquei absolutamente estupefato com esse dado estatístico. Comecei a lembrar do Recife de minha infância. Durante certo tempo morei numa casa da Praça do Carmo, em Olinda. Morava lá e estudava no Colégio Marista do Recife. Ia e voltava do colégio num bonde. Esse bonde saía do centro da cidade, passava pelo Mercado de Santo Amaro, pelo Cemitério dos Ingleses, e tomava a Estrada de Luiz do Rego, onde hoje é o Complexo de Salgadinho e a Escola Naval. Pois bem, tudo aquilo era favela e mangue. O bonde passava por dentro da favela e eu assistia à miséria. Fui lembrando disso, revendo essas imagens na memória e cheguei à conclusão que a beleza do Recife contrastava com a sua pobreza comparável à de Bangladesh. E fui recriando a atmosfera miserável para escrever O Cão Sem Plumas. Eu brincava com aqueles miseráveis que só viveriam em média 28 anos! E as senhoras da sociedade pernambucana faziam crochê para doar aos mortos de fome da Índia, sem olhar para o quintal delas. Foi isso que me chocou e que me levou a escrever esse poema, o primeiro sobre o Recife. Tinha escrito três anos antes Psicologia da Composição, um livro teórico, e achava que minha produção literária estava encerrada. Na verdade, apenas começava.

Fui então para Londres e trabalhei como nunca. Não dava tempo para escrever. Em 1952 alguns idiotas denunciaram a mim e a outros diplomatas como militantes comunistas. Fomos afastados do Serviço diplomático e eu voltei ao Recife por quase dois anos. Fui trabalhar no escritório do meu pai e tentar sustentar a família enquanto processava o governo. Aí cruzei com Maria Clara Machado, filha do meu bom amigo mineiro Aníbal Machado. Ela me encomendou um Auto de Natal para encenar. Escrevi Morte e Vida Severina. Ela leu e devolveu. Disse que não servia. Como o poema era grande e José Olympio queria lançar minha primeira antologia, cortei as marcações para o teatro e incluí Morte e Vida Severina no livro, para dar volume. Foi uma surpresa quando encontrei com Vinicius de Moraes no Rio e ele me disse: "Joãozinho, estou maravilhado com Morte e Vida Severina". Aí eu não entendi nada. "Vinicius, eu não escrevi Morte e Vida Severina para intelectuais como você, respondi. "Escrevi para os sujeitos analfabetos que ouvem cordel na feira de Santo Amaro, no Recife." O poema é simples, retrata a típica realidade do pernambucano que foge da seca em busca do Recife e termina morando numa favela ribeirinha. Foi um sucesso mundial. Isso me orgulha, mas também me surpreende porque Morte e Vida Severina passou a ser coisa de eruditos.

O que me chateou muito também a respeito do sucesso mundial de Morte e Vida Severina foi que a burrice nacional brasileira começou a fazer inferências políticas sobre o poema. Muita gente queria que depois de cada espetáculo eu subisse ao palco e gritasse "Viva a Reforma Agrária". Recusei-me a fazer isto. Não faço teorias para consertar o Brasil, mas não me abstenho de retratar em poesia o que vejo e sinto. Eu mostrei a miséria que havia no Nordeste. Cabia aos políticos cumprirem seu papel. Essas exigências de engajamento político me irritaram muito. Ainda bem que logo depois fui para Sevilha, Genebra, Assunção e fiquei muito tempo longe do Brasil. Foi o tempo necessário para que parassem de achar que eu deveria fazer arte engajada em vez de poesia pura."

Morte e Vida Severina foi, portanto, escrito em 1954/55, por encomenda de Maria Clara Machado, então diretora do grupo O Tablado, que já havia levado ao palco, no ano de 1953, em tradução de João Cabral de Melo Neto, a peça A Sapateira Prodigiosa do poeta espanhol Federico Garcia Lorca. O escritor mineiro Aníbal Machado, escrevendo o texto de apresentação no programa da montagem brasileira da peça de Lorca, disse que
"ninguém melhor do que João Cabral de Melo Neto estaria indicado para a versão brasileira da Sapateira Prodigiosa. Não pela circunstância de ter ele vivido longos anos na Espanha; mas pelo fato de haver penetrado como poeta, e como poeta sentido a Espanha na intimidade de suas raízes e na surpreendente riqueza humana de seu povo.(...) Essa "farsa violenta", como lhe chamou o próprio Lorca, não podia encontrar quem melhor lhe assegurasse, na tradução, o timbre colorido, a naturalidade e o ritmo do original. Trata-se da obra de um grande poeta, conduzida pela mão de outro à surpresa e emoções de uma platéia de língua portuguesa."

Se pensarmos na importância que teve para a composição de Morte e Vida Severina o conhecimento de João Cabral da literatura espanhola, as palavras de Aníbal Machado soam proféticas.


É ainda o próprio autor quem nos explica o material poético utilizado por ele na construção de Morte e Vida Severina:

"Esse texto não poderia ser mais denso. Era obra para teatro, encomendada por Maria Clara Machado. Foi a coisa mais relaxada que escrevi. Pesquisei num livro sobre o folclore pernambucano, publicado no início do século, de autoria de Pereira da Costa. Eu era consciente de que não tinha tendência para o teatro, não sabia criar diálogos no sentido da polêmica. Meus diálogos vão sempre na mesma direção, são paralelos.

Observe o episódio das pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a mesma coisa. A cena do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da Costa. “Compadre, que na relva está deitado” é transposição deste folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama. “Todo céu e terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo pastoril pernambucano. O louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. As duas ciganas estão em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas. Com Morte e Vida Severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão. O encontro com os cantores de incelências é típico do Nordeste. Não me lembro se a mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. A conversa com Severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega."

Além deste material poético, seja da antiga poesia ibérica, seja do folclore pernambucano, outra influência clara na concepção do livro é o Regionalismo de 30. As preocupações de escritores como José Américo de Almeida, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, que se voltaram criticamente para a dura realidade sertaneja antes de João Cabral de Melo Neto, acham-se sintetizadas poeticamente em Morte e Vida Severina.

O romance inaugural do regionalismo neo-realista de 30, A Bagaceira, de 1928, de José Américo de Almeida, narrado na terceira pessoa, por um narrador observador onisciente, apresenta um trabalho de linguagem muito rico. O narrador utiliza-se de uma linguagem erudita, de acordo com a norma culta da língua portuguesa. Já as falas das personagens procuram reproduzir o falar sertanejo, alcançando, por vezes, efeitos de poeticidade próximos àqueles alcançados, na década seguinte, por João Guimarães Rosa. A dicotomia entre a linguagem refinada do narrador e a brutalidade da linguagem das personagens cria uma tensão lingüística que é um dos aspectos mais salientes e importantes do romance.

O próprio Guimarães Rosa afirmava que José Américo de Almeida "abriu para todos nós o caminho do moderno romance brasileiro". Sem dúvida, muito do que um Graciliano Ramos ou um José Lins do Rego iriam tematizar, de maneira mais contundente, já está presente em A Bagaceira - a miséria do sertão; a brutalização do ser humano nordestino; as relações entre os senhores de engenho e os seus empregados; os conflitos de gerações; o ser humano e os animais apresentados como o Severino de João Cabral de Melo Neto, como sócios da fome.

O romance se abre com um prefácio/manifesto, intitulado "Antes que me falem", em que José Américo expõe alguns dos princípios básicos que haveriam de nortear, não apenas a composição da sua obra, mas também de todo o Regionalismo de 30. Vejamos um fragmento:

"O regionalismo é o pé-de-fogo da literatura... Mas a dor é universal, porque é uma expressão da humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos."

O que João Cabral de Melo Neto conseguiu com Morte e Vida Severina foi exatamente colocar uma inteligência mais requintada a serviço do regionalismo, revelando para o mundo aspectos despercebidos da realidade nordestina e brasileira. Em outras palavras, realizou o sonho de José Américo de Almeida.


Outra obra com a qual Morte e Vida Severina dialoga diretamente é o romance O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz. O sucesso que rapidamente alcançou em todo o país esta obra de uma então jovem cearense de 20 anos fez com que O Quinze fosse uma das obras fundamentais na divulgação do regionalismo de 30. Escrito em linguagem bem mais direta e simples do que o romance de José Américo de Almeida, a obra de estréia de Rachel de Queiroz usa a seca de 1915, no Ceará, como pano de fundo para revelar o sofrimento e as angústias tanto dos miseráveis, quanto dos proprietários rurais.

Narrado na terceira pessoa, utilizando da onisciência, o romance apresenta dois núcleos dramáticos que se cruzam: a odisséia de Chico Bento, vaqueiro pobre e desempregado, e sua família, fugindo da seca rumo a Fortaleza, e os desencontros amorosos entre a professora Conceição e o seu primo e quase namorado, o pecuarista Vicente. Conceição leva sua avó, Inácia, da fazenda onde mora, em Quixadá, para ficar em Fortaleza enquanto perdurar a seca. Na capital, a professora, solteirona (aos 22 anos!), ajuda os miseráveis reunidos no Campo de Concentração e pensa no seu primo Vicente que permanece em Quixadá, cuidando bravamente da fazenda da família. Divididos tanto no espaço, quanto por interesses diversos e intrigas várias, os primos, incapazes de se comunicar, vão, mesmo se amando, separando-se a cada dia mais. Enquanto isso, a distância entre Quixadá e Fortaleza vai sendo coberta, a pé, sob o sol escaldante, sem água e sem comida, por Chico Bento, sua mulher Cordulina, sua cunhada Mocinha e seus cinco filhos. Mocinha fica pelo meio do caminho e acaba "caindo na vida", o filho mais velho morre envenenado, outro foge e se perde para sempre. A família, já bem reduzida, acaba por chegar ao Campo de Concentração em Fortaleza, onde é acolhida por Conceição, que fica com o filho mais novo e consegue passagens para os restantes irem tentar uma sorte melhor em São Paulo. Com o fim da seca, Conceição vai visitar Quixadá, sentindo-se "estéril, inútil, só". Encontra-se com Vicente, também solitário, mas a comunicação entre os dois já se tornara impossível. "E Conceição o viu sumir-se no nevoeiro dourado da noite, passando a galope, como um fantasma, por entre o vulto sombrio dos serrotes."

Sem dúvida alguma podemos considerar Chico Bento e sua família como precursores diretos de Severino, o retirante que procura, através de sua odisséia esfomeada, chegar à capital e a uma vida melhor.

Mas é Graciliano Ramos o escritor regionalista de 30 a quem João Cabral de Melo Neto reconhecidamente admira e dedica um comovido poema no livro Serial (1961), em que a voz em primeira pessoa de Graciliano, marcada pelos dois pontos incomuns do título, confunde-se com a sua própria voz:


Graciliano Ramos:
Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

* * *
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se na fraude.

* * *

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

* * *


Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.


O poema de João Cabral apresenta não apenas uma interpretação da obra de Graciliano Ramos, mas aponta exatamente para os locais de encontro entre sua própria obra, em especial Morte e Vida Severina, e as do maior dos regionalistas de 30. Falo somente com o que falo: a linguagem enxuta, cortante e densa. Falo somente do que falo: a vida seca, áspera e clara do sertão. Falo somente por quem falo: o homem sertanejo sobrevivendo na adversidade e na míngua. Falo somente para quem falo: para os que precisam ser alertados para a situação de miséria do nordeste. Mais do que uma síntese da obra de Graciliano Ramos, Cabral volta-se para sua própria obra. Através de Graciliano, fala, a um tempo, de Vidas Secas e de Morte e Vida Severina.
É claro que Fabiano, Sinha Vitória e seus meninos "sem nome" são todos Severinos. Vidas Secas (1938) é a fonte mais clara em que bebe João Cabral. Vidas Secas, seu cenário, sua crítica ácida e, principalmente a linguagem seca e direta, de falar com coisas do mestre Graciliano. Como já o apontou o professor Dácio Antônio de Castro, "Vidas Secas tornou-se um clássico da literatura modernista, não só pela originalidade das soluções estilísticas e estruturais, como pela denúncia do drama do trabalhador rural, que ainda não obtiveram solução satisfatória." O mesmo poderia ser dito, sem qualquer alteração, de Morte e Vida Severina.

Um Auto de Natal Pernambucano

Morte e Vida Severina traz como subtítulo Um Auto de Natal Pernambucano. Trata-se, portanto, de uma obra que procura aclimatar a Pernambuco o espírito dos autos sacramentais ou hieráticos da península ibérica. O professor Segismundo Spina assim nos apresenta essa forma dramática:


"Os autos (que assim se chamaram estas representações teatrais peninsulares por conterem apenas um ato) eram composições dramáticas de caráter religioso, moral ou burlesco (mas preferentemente devoto e com personagens alegóricas) desenvolvidas ao longo da Idade Média, de cujo teatro religioso se originaram, adquirindo sua forma típica na Península Ibérica entre os séculos XV e XVI. Suas origens se prendem às representações religiosas do teatro medieval (aos "mistérios", aos "dramas litúrgicos" e às "moralidades"), portanto ligadas ao teatro litúrgico europeu, embora não tenhamos hoje senão vestígios muitos imperfeitos dessas representações peninsulares anteriores a Gil Vicente (em Portugal) e a Juan del Encina e Lucas Fernandes (na Espanha)."

Segundo grandes estudiosos da literatura poética e dramática medieval, como Karl Vossler , uma das principais origens dos autos está na representação medieval natalina dos Presépios, iniciada por São Francisco de Assis, que, obtendo permissão papal, realizou no Castelo de Grecio, na noite de Natal de 1223, uma representação do nascimento de Cristo. É Pereira da Costa, fonte reconhecida por João Cabral com fundamental para a concepção de Morte e Vida Severina, quem nos relata como esses Presépios foram introduzidos em Pernambuco:

"Desde então (1223), conservou-se sempre nas igrejas dos religiosos franciscanos o uso da representação dos presépios, que depois se tornou comum e geral em todo o mundo.
O uso dos presépios em Portugal, como refere Fr. Luiz de Souza, teve começo no convento das freiras do Salvador, em Lisboa, no ano de 1391, levantando-se no meio do templo uma armação, representando o Estábulo de Belém, com figuras que interpretavam a cena do nascimento de Jesus.


Depois, já no século XVI, foi o assunto dramatizado, teve entrada no teatro, e é talvez daí que vem o auto hierático português, de tão variados assuntos. A este respeito diz Theóphilo Braga o seguinte: ''Como em todos os povos católicos em que as festas religiosas do Natal, Reis Magos e Paixão eram a base do teatro hierático, tivemos esses autos ou vigílias, que se ligavam às manifestações do culto, sobretudo no tempo em que a igreja admitia o povo à participação na liturgia. Foi por um monólogo de natureza da visitação da lapinha ou do presépio, que Gil Vicente começou a elaborar a forma literária do auto hierático".

A introdução do presépio em Pernambuco vem, talvez, de fins do século XVI, acaso iniciada no convento dos franciscanos em Olinda, por frei Gaspar de Santo Antônio, a quem na custódia chamavam O Primogênito, por ser o primeiro religioso que tomou o hábito no Brasil, naquele mesmo convento, no ano de 1585."

Como podemos perceber, João Cabral de Melo Neto, ao criar seu Auto de Natal Pernambucano, vai buscar inspiração na antiga tradição medieval ibérica que, por sua vez, já havia penetrado, desde o século XVI, na tradição pernambucana. Ainda segundo Pereira da Costa, a mais bela e aparatosa das festas populares pernambucanas é exatamente as Pastorinhas ou Pastoris, ou mais propriamente, Presépios. A poesia dessas festas vai ser transformada por João Cabral na base para a construção do seu próprio Presépio, no parte final de Morte e Vida Severina.


Dos autores de autos na literatura em língua portuguesa Gil Vicente é certamente o mais significativo. Se João Cabral procurou restaurar o auto medieval no contexto nordestino, jamais poderia ignorar a obra do autor do Auto da Barca do Inferno. Como bem o apontou o professor Ivan Teixeira:

"A experiência vicentina encontra diversas ressonâncias na literatura contemporânea. No Brasil, o exemplo mais célebre talvez seja Morte e Vida Severina (1956), de João Cabral de Melo Neto. Igualmente ao pai do teatro português, João Cabral adota a justaposição de cenas e o verso redondilho. Aproxima-se ainda pelo tom explicativo da sátira contra as desigualdades sociais, assim como pela ênfase na tonalidade poética do enunciado. As personagens possuem a mesma constituição alegórica, representando cada uma um determinado tipo social do Nordeste. Por fim, o subtítulo remete imediatamente ao teatro primitivo de Gil Vicente: "Auto de Natal Pernambucano". De fato, o texto cabralino obedece à estrutura do auto, isto é, classifica-se mais como poesia dramática do que propriamente como peça de teatro."

É ainda em Gil Vicente que encontramos uma descrição da dureza da vida do lavrador que em muito se aproxima da situação do Severino de João Cabral. Como o colocam Óscar Lopes e Antônio José Saraiva:

"A caricatura do lavrador e do pastor nunca em Gil Vicente vai além dos aspectos superficiais e anedóticos, como a linguagem, a ignorância, a simplicidade, que, se os tornam ridículos aos olhos do mundo, lhes dão acesso ao reino dos Céus, ou pelo menos os livram de ir para o Inferno na companhia do fidalgo e do clérigo. Em compensação, as duras condições em que vive o camponês, a rapina de que é vitima, aparecem expressas com vigor na Romagem de Agravados e no Auto da Barca do Purgatório. O Lavrador deste último auto é porventura a personagem mais comovente de toda a obra vicentina:

Nós somos vida das gentes
e morte das nossas vidas.


Vive sujeito ao peso dos tributos e à incerteza das estações. O senhor não lhe perdoa as rendas, pouco se importando com a sua fome. O próprio Deus, que envia inoportunamente o sol ou a chuva, parece estar contra ele, e cerra os ouvidos às suas orações - segundo as queixas de João Murtinheira na Romagem de Agravados."

Esse lavrador abandonado por Deus, vítima da rapina social, já descrito por Gil Vicente, certamente comoveu e inspirou o ateu João Cabral. Dando-lhe, até mesmo, a sugestão do título de Morte e Vida Severina. No entanto, ao contrário de Gil Vicente, o poeta pernambucano jamais ridiculariza seu lavrador, e sim confere-lhe um estatuto trágico sem, no entanto, ser melodramático ou panfletário.


Título, Estrutura e Enredo

Dois procedimentos chamam à atenção de imediato no título do livro. A inversão do sintagma vida e morte e a adjetivação do substantivo próprio Severino. Tais recursos poéticos colaboram para realçar aspectos importantes na composição da obra. Segundo Marta de Senna:

"Ao inverter a ordem natural do sintagma "vida e morte", o poeta registra com precisão a qualidade da vida que seu poema visa a descrever: uma vida a que a morte preside. E ambas, morte e vida, têm por determinante o adjetivo "severina". Igualam-se nisso de serem ambas pobres, parcas, anônimas. O procedimento de adjetivação do substantivo é recorrente na poesia de Cabral, e aqui adquire especial relevo por estar em posição privilegiada, no título da peça. Morte e Vida Severina, porque é Severino o protagonista, que, desde a apresentação, insiste no caráter comum de seu nome, antes um "a-nome" no contexto em que vive. De substantivo próprio, "Severino" passa a ser comum; daí a ser adjetivo é um passo. (...) Será interessante advertir que o uso de "severino" como adjetivo no auto cabralino não é senão a reversão da palavra à sua origem. Diminutivo de "severo", "severino" é originariamente um adjetivo. Daí, passou a ser nome próprio, como ocorreu em tantos outros casos nas línguas ocidentais: Augusto, Cândido, Cristiano, Pio, Clemente - para citar apenas alguns exemplos. Ora, o que Cabral realiza é exatamente o retorno do adjetivo ao adjetivo, sendo o novo enriquecido da carga semântica de que foi alimentado durante o "estágio" substantivo próprio, que, no caso específico, é o Severino anônimo do sertão nordestino."

É importante acrescentar que, além de descrever uma vida presidida pela morte, o título também demonstra o percurso feito por Severino durante a peça. Sai da morte para alcançar a vida. A estrutura geral da peça, ou sua macroestrutura, apresenta exatamente este caminho.



Morte e Vida Severina se divide em 18 cenas ou fragmentos poéticos, todos precedidos por um título explicativo de seu conteúdo, praticamente resumos do que encontramos nos poemas em si. Podemos separá-los em dois grandes grupos.


As primeiras 12 cenas descrevem a peregrinação de Severino, seguindo o rio Capibaribe, fugindo da morte que encontra por toda parte, até a cidade do Recife, onde, para seu desespero, volta a encontrar apenas a miséria e a morte. Trata-se do Caminho ou Fuga da Morte. Nesta parte o poeta habilmente alterna monólogos de Severino a diálogos que trava ou escuta no caminho.


As últimas 6 cenas apresentam O Presépio ou O Encontro com a Vida, em que é descrito o nascimento do filho de José, mestre carpina, em clara alusão ao nascimento de Jesus. A peça se encerra, portanto, com uma apologia da vida, mesmo que seja severina. Toda esta parte, com exceção do monólogo final do mestre carpina, foi adaptada por João Cabral de Melo Neto dos Presépios ou Pastoris do folclore pernambucano

Vejamos, através dos títulos explicativos, como o enredo do drama se constrói:

I - Caminho ou Fuga da Morte

1. (Monólogo) - O retirante explica ao leitor quem é e a que vai.
2.(Diálogo) - Encontra dois homens carregando um defunto numa rede, aos gritos de: "ó irmãos das almas! irmãos das almas! não fui eu que matei não!"
3. (Monólogo) - O retirante tem medo de se extraviar porque seu guia, o rio Capibaribe, cortou com o verão.
4. (Diálogo) - Na casa a que o retirante chega estão cantando excelências para um defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores.
5. (Monólogo) - Cansado da viagem o retirante pensa interrompê-la por uns instantes e procurar trabalho ali onde se encontra.
6. (Diálogo) - Dirige-se à mulher na janela que depois descobre tratar-se de quem se saberá.
7. (Monólogo) - O retirante chega à Zona da Mata , que o faz pensar, outra vez, em interromper a viagem.
8. (Diálogo) - Assiste ao enterro de um trabalhador de eito e ouve o que dizem do morto os amigos que o levaram ao cemitério.
9. (Monólogo) - O retirante resolve apressar os passos para chegar logo ao Recife.
10. (Diálogo) - Chegando ao Recife, o retirante senta-se para descansar ao pé de um muro alto e caiado e ouve, sem ser notado, a conversa de dois coveiros.
11. (Monólogo) - O retirante aproxima-se de um dos cais do Capibaribe.
12. (Diálogo) - Aproxima-se do retirante o morador de um dos mocambos que existem entre o cais e a água do rio.

II - O Presépio ou O Encontro com a Vida

13. (Presépio) - Uma mulher, da porta de onde saiu o homem, anuncia-lhe o que se verá.
14. (Presépio) - Aparecem e se aproximam, da casa do homem, vizinhos, amigos,
duas ciganas, etc.
15. (Presépio) - Começam a chegar pessoas trazendo presentes para o recém-nascido.
16. (Presépio) - Falam as duas ciganas que haviam aparecido com os vizinhos.
17. (Presépio) - Falam os vizinhos, amigos, pessoas que vieram com presentes, etc.
18. (Conclusão da Peça) - O carpina fala com o retirante que esteve de fora, sem tomar parte em nada.

As Cenas da Morte

No seu Romanceiro (1828), grande levantamento da poesia popular portuguesa, o poeta português Almeida Garrett apresenta um romance de origem medieval em que um triste cavaleiro de Avalor viaja só e desesperançado acompanhando as margens de um rio:

Pela ribeira de um rio
Que leva as águas ao mar,
Vai o triste de Avalor,
Não sabe se há de tornar.
As águas levam seu bem,
Ele leva o seu pesar;
E só vai sem companhia,
Que os seus fora ele deixar;
Pois quem não leva descanso
Descansa em só caminhar.

É bastante antiga, portanto, a tradição de se colocar em forma poética a perambulação do herói às margens do rio. Tomando como modelo a forma do romance ibérico, pouco antes de escrever Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto havia escrito o longo poema O Rio ou relação da viagem que faz o Capibaribe de sua nascente à cidade do Recife (1954), em que dá voz ao próprio rio Capibaribe, que relata seu percurso:

Sempre pensara em ir
caminho do mar.
Para os bichos e rios
nascer já é caminhar.
Eu não sei o que os rios
têm de homem do mar;
sei que se sente o mesmo
e exigente chamar.
Eu já nasci descendo
a serra que se diz do Jacarará,
(...)
Desde tudo que lembro,
lembro-me bem de que baixava
entre terras de sede
que das margens me vigiavam.
Rio menino, eu temia
aquela grande sede de palha,
grande sede sem fundo
que águas meninas cobiçava.
Por isso é que ao descer
caminho de pedras eu buscava,
que não leito de areia
com suas bocas multiplicadas.
Leito de pedra abaixo
rio menino eu saltava.
Saltei até encontrar
as terras fêmeas da Mata.

As palavras do poeta ecoam a de um estudioso do século XIX, Manuel da Costa Honorato, que, em 1863, assim descreveu o percurso do Capibaribe:


"(...) nasce na fralda oriental da serra do Jacarará, um dos ramos dos Cairiris Velhos, no Olho-d'Água do Gavião e Lagoa do Angu, e daí por entre a serra donde nasce e a do Brejo segue, atravessando as comarcas do Brejo, Limoeiro, Pau-d'Alho e Recife, banhando as vilas do Limoeiro e Pau-d'Alho e muitas outras povoações, num leito de rochas de sua fonte até a comarca de Pau-d'Alho, é arenoso daí até o Recife, e se lança no oceano depois de ter feito um curso de 80 léguas pouco mais ou menos."

Se em O Rio já se revelava, além do cuidadoso estudo da hidrografia do Capibaribe, uma preocupação fundamental com a miséria que o rio corta, com os retirantes que o acompanham, nas 12 primeiras cenas de Morte e Vida Severina, o poeta dá voz ao retirante Severino que, fugindo da morte, segue as águas do rio Capibaribe desde a serra da Costela até sua foz em Recife. Vejamos estas cenas:

1
Para compor o primeiro monólogo de Severino, assim como todos os outros monólogos do livro, João Cabral de Melo Neto tomou como modelo o romanceiro ibérico. Como os romances portugueses medievais, os monólogos são compostos em medida velha, em versos redondilhos maiores ou heptassílabos, e apresentam rimas alternadas, algumas perfeitas ou consoantes e a grande maioria toante, entre vogais, como as prefere João Cabral. O monólogo de abertura, composto por 64 versos, pode ser dividido em três partes. Nos trinta primeiros versos, Severino tenta apresentar-se ao público/leitor, mas esbarra na falta de individualidade, na despersonalização do sertanejo depauperado:

O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.


Nestes versos, em que predominam as rimas consoantes, encontramos também referências ao papel dos coronéis na vida do sertão, e temos um isomorfismo, uma identificação total, entre Severino e o local em que vivia, a serra da "Costela", magra e ossuda como o sertanejo esfomeado.


Apresentando-se como um entre tantos retirantes "sem nome", Severino aparece como sinédoque (a parte pelo todo) de todo o povo sofrido do sertão.


Nos 28 versos seguintes Severino apresenta a descrição dos severinos, iguais na forma e no destino de morrer antes dos trinta de tanto tentar tirar algo da terra intratável. Note-se que descrição da vida severina começa pela apresentação da morte severina.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.

As rimas neste fragmento já são predominantemente toantes. Severino apresenta a sua vida/morte em 28 versos, exatamente o mesmo número de anos a que, segundo João Cabral, reduzia-se a expectativa média de vida do pernambucano na época: antes dos trinta.

Já nos 6 últimos versos, Severino anuncia o início de sua peregrinação, desistindo de se individualizar, e apresentando-se como o severino que se vê, portanto aquele que representa todos os outros que os leitores/espectadores devem sempre ter em mente ao acompanhá-lo:

Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

2
A cena seguinte apresenta o primeiro diálogo da peça. Inspirado no folclore Catalão, João Cabral apresenta o encontro de Severino com dois homens que levam um defunto embrulhado em rede para ser enterrado no cemitério de Toritama, sobre o qual o poeta escreve, na mesma época da redação de Morte e Vida Severina, um dos poemas intitulados Cemitério Pernambucano do livro Paisagem com Figuras (1956):


Para que todo este muro?
Por que isolar estas tumbas
do outro ossário mais geral
que é a paisagem defunta?
A morte nesta região
gera dos mesmos cadáveres?
(...)

No cenário desolado, os irmãos das almas explicam a Severino como e porque morreu o Severino que carregam:

-- E o que guardava a emboscada,
irmãos das almas,
e com que foi que o mataram,
com faca ou bala?
-- Este foi morto de bala,
irmão das almas,
mais garantido é de bala,
mais longe vara.
-- E quem foi que o emboscou,
irmãos das almas,
quem contra ele soltou
essa ave-bala?
-- Ali é difícil dizer,
irmão das almas,
sempre há uma bala voando
desocupada.
-- E o que havia ele feito
irmãos das almas,
e o que havia ele feito
contra a tal pássara?
-- Ter uns hectares de terra,
irmão das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
-- Mas que roças que ele tinha,
irmãos das almas,
que podia ele plantar
na pedra avara?
-- Nos magros lábios de areia,
irmão das almas,
dos intervalos das pedras,
plantava palha.
-- E era grande sua lavoura,
irmãos das almas,
lavoura de muitas covas,
tão cobiçada?
-- Tinha somente dez quadras,
irmão das almas,
todas nos ombros da serra,
nenhuma várzea.
-- Mas então por que o mataram,
irmãos das almas,
mas então por que o mataram
com espingarda?
-- Queria mais espalhar-se,
irmão das almas,
queria voar mais livre
essa ave-bala.
-- E agora o que passará,
irmãos das almas,
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
-- Mais campo tem para soltar,
irmão das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.

O fragmento revela que a disputa pela terra leva ao assassinato do Severino Lavrador. Através da metáfora da ave-bala que quer mais espaço para voar, João Cabral apresenta os proprietários de terra que, matando impunemente lavradores (com ou sem terra), vão conquistando sempre mais espaço para atirar.

Em entrevista recente, Cabral aponta para o humor negro existente em certa passagem desta cena:

"A crítica nunca se preocupou com o humor negro de minha poesia. Leia Dois Parlamentos, por exemplo. É puro humor negro. Em Morte e Vida Severina, também existe humor negro. Você lembra daquele trecho: "Mais sorte tem o defunto / irmão das almas / pois já não fará na volta / a caminhada"? Pois bem. A origem disso é uma história que me contaram na Espanha. Dizem que, na época de Franco, ele mandava fuzilar seus inimigos num lugar chamado Sória, que é o mais frio do país. Conta-se que, um dia, um condenado virou-se para os soldados que iriam executá-lo e disse: "Puxa, como faz frio neste lugar". Ao que um dos soldados respondeu: "Sorte tem você, que não precisa fazer o caminho de volta. Foi assim que essa frase foi parar no meio de Morte e Vida Severina. Há mais humor negro do que isso?"


3
O monólogo apresenta a insegurança de Severino quanto a que caminho seguir, pois o seu guia, o Capibaribe, secara devido à seca do verão. Cabe lembrar que, de fato, o rio Capibaribe é, desde a sua foz até a cidade de Limoeiro, intermitente, ou seja, corta ou seca durante o verão. A partir de Limoeiro, na entrada da Zona da Mata, até Recife, trata-se de um rio perene.

Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.


4
Severino aproxima-se de uma casa em que se cantam excelências para um defunto chamado Severino. Composta em versos livres, esta cena caracteriza-se pela ironia. Um homem, fora da casa, vai colocando as palavras dos cantadores na perspectiva da vida de não, de privação, que se leva no sertão:

-- Finado Severino,
quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
-- Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
-- Finado Severino,
etc...
-- Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
-- Finado Severino,
etc...
-- Dize que coisas de não,
ocas, leves:
como o caixão, que ainda deves.

5
Desanimado por encontrar apenas morte, quando procurava vida, Severino pensa em interromper a viagem, procurar um trabalho e ir vivendo por lá mesmo:

só morte tem encontrado
quem pensava encontrar vida,
e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
Penso agora: mas por que
parar aqui eu não podia
e como o Capibaribe
interromper minha linha?

A morte severina já havia sido descrita no primeiro monólogo e somente agora Severino se refere à vida severina. Severino não encontra vida nem mesmo no rio que julgava perene e de quem se aproxima no desejo de não mais continuar.

6
Dialogando com uma mulher à janela, Severino descobre que na região não há trabalho para lavradores como ele, apenas profissionais ligados à morte, rezadeiras como ela, coveiros, ou mesmo farmacêuticos e médicos, têm algo a fazer por lá:

-- Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
Imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente,
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
Só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.


7
Continuando a viagem, Severino alcança a Zona da Mata, que o deixa deslumbrado:

-- Bem me diziam que a terra
se faz mais branda e macia
quanto mais do litoral
a viagem se aproxima.
Agora afinal cheguei
nessa terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
Os rios que correm aqui
têm a água vitalícia.
Cacimbas por todo lado;
cavando o chão, água mina.
Vejo agora que é verdade
o que pensei ser mentira.
Quem sabe se nesta terra
não plantarei minha sina?

Mas Severino não encontra ninguém à vista neste paraíso, apenas avista um cemitério. Sua ingenuidade reveste até o campo santo de otimismo:

Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.

8
A ilusão de Severino com a Zona da Mata é logo quebrada quando se aproxima do cemitério e ouve o que dizem do morto os seus amigos:

-- Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
-- É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
-- Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
-- É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
-- É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
-- É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
Trata-se, portanto, da mesma morte severina, que persegue o lavrador onde ele esteja.

9
Neste monólogo, Severino de certa maneira contradiz o monólogo anterior, em que se mostrava otimista em relação à Zona da Mata. Inicia-se com o verso: Nunca esperei muita coisa. Esperava apenas fugir da estatística que assustara João Cabral: da morte antes dos trinta. Decepcionado com o que ouvira no cemitério, decide apressar o passo para chegar logo ao Recife, pois:

(...) não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
Está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça ,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.

10
Mesmo chegando ao Recife, o retirante não escapa da morte. Senta-se para descansar exatamente ao pé do muro de um cemitério e escuta a conversa de dois coveiros:

-- Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos de enterrá-los em terra seca.
-- Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
dentro do rio e da morte.
-- O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água;
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
-- E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
-- Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
-- E esse povo lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só, aqui chegando
cemitérios esperando.
-- Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o seu erro:
vêm é seguindo seu próprio enterro.



Não há como não lembrar, em relação a esta cena, o célebre diálogo dos coveiros no Ato V, Cena I, da peça Hamlet, de Shakespeare. Ao retornar a Elsenor, Hamlet pára no cemitério e ouve os coveiros (apresentados por Shakespeare como clowns: bobos, palhaços) conversarem sobre o suicídio de sua amada Ofélia. A conversa é absurda, mas não deixa de ter pontos de contato com a situação de Severino. Diz um dos coveiros: "Se o homem vai à água e se afoga, de qualquer modo, queira ou não queira, ele vai, presta atenção nisso. Mas a água vai a ele e o afoga, ele não se afoga - "ergum", aquele que não é culpado de sua própria morte não abrevia a sua própria vida."

11
O último monólogo de Severino inicia-se, como o anterior, com o verso Nunca esperei muita coisa. Desiludido com o que alcançara, Severino se dirige a um cais do rio Capibaribe e reflete sobre a chegada a Recife:

E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
A solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:


O retirante, chegando a seu objetivo, contempla pela primeira vez a idéia do suicídio. Jogar-se, como a Ofélia de Shakespeare, às águas. É bom lembrar que tudo o que o lavrador encontrara até aqui fora a morte. Se só a morte dele se aproxima, por que não se entregar definitivamente a ela?

12
Severino está por se atirar ao rio quando dele se aproxima José, o mestre carpina , a quem o retirante faz uma série de perguntas, todas respondidas com sabedoria, realismo e prudência:

-- Severino, retirante,
o meu amigo é bem moço;
sei que a miséria é mar largo,
não é como qualquer poço:
mas sei que para cruzá-la
vale bem qualquer esforço.
(...)
-- Severino, retirante,
muita diferença faz
entre lutar com as mãos
e abandoná-las para trás,
porque ao menos esse mar
não pode adiantar-se mais.
A conversa é interrompida quando Severino faz a questão crucial:

-- Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?

Neste ponto se inicia o Presépio que finaliza a peça. Interrompida a conversa, Severino e o mestre carpina assistem ao espetáculo do nascimento do filho de José.

O Presépio ou O Encontro com a Vida

As cinco cenas seguintes da peça apresentam o Presépio dentro da peça. Todas elas foram extraídas, quase literalmente, do folclore pernambucano, mais especificamente do livro de Pereira da Costa, Folk-lore Pernambucano: subsídios para a história da poesia popular em Pernambuco, publicado originalmente em 1908.


13
Uma mulher anuncia ao mestre carpina que seu filho nascera:

Compadre José, compadre,
que na relva estais deitado.
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
Estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
Saltou para dentro da vida
ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido.

Trata-se de uma resposta a Severino, que indagara sobre saltar da vida para a morte. Aqui se dá o contrário, a criança salta para a vida.



Em Pereira da Costa encontramos a seguinte estrofe na Loa do anjo anunciando as pastoras o nascimento do messias:

Pastoras, belas pastoras,
Que na relva estais deitadas
Descansais, e não sabeis,
Que a luz do céu é chegada?

14
O fragmento seguinte, como todo o Presépio, é inspirado no material recolhido por Pereira da Costa, que registrou nas Jornadas:

Todo o céu e terra
Vos cantem louvor,
Ó Menino Deus,
Nosso redentor.

João Cabral, ironicamente, adapta a fala dos vizinhos que se aproximam da casa do mestre carpina para:

-- Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
-- Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.


Certamente o poeta se refere aqui ao famoso ensaio do sociólogo recifense Gilberto Freyre intitulado Sobrados e Mocambos (1936). A ironia está em tornar sedutores os mocambos (habitações miseráveis) ao celebrá-los como de certa forma o fez Gilberto Freyre.

15
As pessoas trazem presentes para o recém-nascido. Em Pereira da Costa temos as Ofertas das Pastoras, em que se lê:

Minha pobreza tal é
Que uma oferta não achei!
Na aldeia não encontrei
Cousa que fizesse fé;

Em Morte e Vida Severina, temos a reelaboração:

-- Minha pobreza tal é
que não trago presente grande:
trago para a mãe caranguejos
pescados por esses mangues;
mamando leite de lama
conservará nosso sangue.



João Cabral adapta o original à situação de vida das populações ribeirinhas ao Capibaribe, tornando concretos e locais os presentes oferecidos. Nesta cena enumera uma série de localidades - cidades pernambucanas e bairros de Recife - de onde se originariam os presentes:

--Eis ostras chegadas agora.
apanhadas no cais da Aurora.
--Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
--Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
--Peixe pescado no Passarinho,
carne de boi dos Peixinhos.
--Siris apanhados no lamaçal
que há no avesso da rua Imperial.
--Mangas compradas nos quintais ricos
do Espinheiro e dos Aflitos.
--Goiamuns dados pela gente pobre
da Avenida Sul e da Avenida Norte.

João Cabral de Melo Neto, jogando com os nomes tão sugestivos - como já o notara Manuel Bandeira em Evocação do Recife - das ruas e bairros de Recife, cria um jogo quase surrealista. Na verdade, para quem não sabe que estes são nomes de bairros, a passagem é completamente surrealista.

16
Duas ciganas prevêem o futuro da criança. Enquanto em Pereira da Costa uma delas era pessimista e a outra otimista, em Morte e Vida Severina a variação das previsões se dá pelo fato da primeira cigana prognosticar um futuro enlameado, terminando como pescador de siri e camarão, e a segunda preconiza-o como operário, mudando-se das margens do Capibaribe para um mocambo melhor nos mangues do Beberibe, o outro rio que corta Recife:

Não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
E mais: para que não pensem
que em sua vida tudo é triste,
vejo coisa que o trabalho
talvez até lhe conquiste:
que é mudar-se destes mangues
daqui do Capibaribe
para um mocambo melhor
nos mangues do Beberibe.


17
A última cena do Presépio apresenta todos os visitantes do recém-nascido elogiando, ainda seguindo Pereira da Costa, a beleza da criança. Trata-se de uma beleza diferente: pálida, franzina, fraca e magra, mas é beleza que é a afirmação da vida, o brotar da novidade:

-- De sua formosura
deixai-me que diga:
é tão belo como um sim
numa sala negativa.
(...)
-- Belo porque é uma porta
abrindo-se em mais saídas.
(...)
-- Belo porque tem do novo
a surpresa e a alegria.
-- Belo como a coisa nova
na prateleira até então vazia.
-- Como qualquer coisa nova
inaugurando o seu dia.
-- Ou como o caderno novo
quando a gente o principia.
-- E belo porque com o novo
todo o velho contagia.

18
Terminado o Presépio, o mestre carpina está pronto para responder à pergunta de Severino:

-- Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é assim pequena
a explosão, como a ocorrida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.

Curiosamente, a peça se encerra sem qualquer resposta de Severino. Em algumas montagens os encenadores colocaram a última estrofe na boca de Severino e não, como está claro no texto, na do mestre carpina. Esse procedimento vem apenas reforçar a mensagem final da peça: a de que mesmo a vida quase morte severina, aparentemente sem saída ou esperança, pode e deve ser vivida.


fonte:
http://fredbar.sites.uol.com.br/mvs.html